Globalização exige redefinição do conceito de direitos humanos, diz Boaventura

Na luta pela efetivação dos direitos humanos, a defesa da igualdade entre todos sempre foi uma bandeira central. Independente das origens nacionais, das etnias, das opções sexuais, a matriz da modernidade deu ênfase à igualdade como princípio para a construção de sociedades justas. Da segunda metade dos anos 70 para cá, no entanto, a nova atmosfera cultural e ideológica trouxe à tona o tema da diferença e, conseqüentemente, novos direitos: o direito à diferença. No lugar da igualdade, o que passa a motivar grandes lutas sociais é o direito de cada um ser pessoal e coletivamente diferente dos outros; é o direito dos diferentes serem tratados como iguais sem que isso anule suas diferenças.

Na opinião do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que esteve recentemente em São Paulo, enquanto os direitos humanos forem concebidos como universais, tenderão a operar como um “localismo globalizado”. O localismo globalizado seria resultado de uma produção local mas que se apresenta como global para todo o mundo. Um dos melhores exemplos do conceito seria a rede de lanchonetes McDonald´s. Partindo do princípio de que a maioria dos países que construíram a Declaração Universal dos Direitos Humanos estava dentro de um determinado universo e que muitas tradições não intervieram nesta produção, Boaventura acredita que os direitos humanos, como concebidos em sua origem, podem ser considerados um localismo globalizado.

O contrário deste conceito seria o cosmopolitismo, uma globalização que nasceria de baixo para cima. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, para serem resignificados numa perspectiva que não nega sua história mas que os quer trazer para a problemática de hoje, Boaventura acredita que os direitos humanos terão de ser reconceitualizados como multiculturais.

“Muitos movimentos que defendem um outro mundo possível fazem isso sem defender necessariamente os direitos humanos, ou o conceito que temos de direitos humanos. Dizem que “os direitos humanos são uma armadilha dos países do norte contra nós”. O universalismo abstrato dos direitos humanos não os convence. Daí a necessidade de se refletir sobre o que fazer com diferentes concepções de dignidade humana que existem no mundo globalizado”, disse o sociólogo, durante o último seminário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), realizado em São Paulo.

Essa necessidade se torna urgente sobretudo quando, tanto no plano internacional como nos nacionais, o discurso da defesa dos direitos humanos é fortemente afirmado mas, ao mesmo tempo, as violações se multiplicam. A questão posta por Boaventura é qual o grau de coerência exigível entre os princípios dos direitos humanos e as práticas efetivadas em nome deles.

“Os direitos humanos hoje são uma resposta fraca às perguntas fortes. Não nos servem porque, neste mundo globalizado, multiplicaram-se as zonas de contato entre diferentes formas de justiça, cultura e identidades [que eles desconsiderariam]. Não resolveremos os problemas do mundo impondo a democracia ao mundo ou defendendo os direitos humanos. Essas respostas não convencem quando vamos para as ruas. O Oriente Médio hoje é onde mais tragicamente somos incapazes de dar uma resposta forte com base nos direitos humanos”, avalia.

“A lógica da guerra é totalmente oposta à dos direitos humanos. Mas, em sua lógica tradicional, os direitos humanos não vão resistir, porque são produto do ocidente. Por isso a necessidade de uma concepção multitradicional deles. Por exemplo: por que tanto sofrimento humano que temos pelo mundo não é considerado violação de direitos humanos? A grande violação hoje não são as provocadas pelos governos do sul, mas a brutal diferença entre os países do sul e do norte. Hoje os 250 homens mais ricos têm mais riqueza que os 40 países mais pobres somados”, afirma Boaventura.

O sociólogo português chama de injustiça cognitiva o fato de somente os princípios dos direitos humanos vigorarem globalmente e não outras concepções de dignidade humana que outras culturas desenvolveram ao longo da história. O direito à propriedade, considerado fundamental, é totalmente inválido, por exemplo, na cultura indígena, onde a terra faz parte da identidade dos povos. Para Boaventura, essa discrepância entre princípios diferentes é um dos fatores de turbulência que os direitos humanos atravessam.

“Outro fator é a contradição entre princípios e prática. Na cultura ocidental, fala-se dos princípios para se desobrigar das práticas. Assim, cada vez mais os direitos humanos se transformam numa hipocrisia. Só proclamados, mas violados; não garantem a justiça social”, acredita.

Caminho para a resignificação

A mudança desse universalismo ocidental para o multiculturalismo, voltada para a transição da idéia de “igualdade ou diferença” para “igualdade na diferença”, pressupõe algumas superações, na avaliação de Vera Maria Candau, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e membro da NOVAMERICA/Brasil. A primeira delas seria a do debate entre universalismo e relativismo cultural.

“Toda cultura tem intenção de globalizar parte de sua cultura. Mas o universalismo quer ser hegemônico. Já o relativismo diz que nenhuma cultura é completa e que não seria possível construir culturas em conjunto, o que também é falso. Todas são incompletas e nenhuma dá conta de toda a riqueza do humano. Então, mais do que trabalhar com a idéia de uma cultura que tem que ser universalizada e ser a verdadeira, temos que trabalhar com a necessidade da interação entre elas. Temos que negar tanto o relativismo como o universalismo absoluto”, acredita. “É preciso trabalhar nesta dialética entre superar toda a desigualdade e não negar a diferença”, afirma Vera Candau.

Ela chama este multiculturalismo aberto e interativo de interculturalismo, ou seja, algo que supõe a deliberada inter-relação entre diferentes grupos sociais; que situa-se em confronto com visões diferencialistas, que isolam os grupos sociais; que parte da afirmação de que vivemos um processo de hibridização cultural intenso, que promove a construção de identidades abertas, em mudança permanente.

Citando o próprio Boaventura de Sousa Santos, a carioca Vera Candau encerrou sua fala este final de semana, em Brasília, no Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos: “Temos o direito a ser iguais sempre que as diferenças nos inferiorizam. Temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.

Fonte: Bia Barbosa – Agência Carta Maior