Democratização da Comunicação: como se constrói um monopólio

No próximo dia 5 de outubro, vencem as concessões das principais emissoras de TV brasileiras. Entre elas, estão cinco concessões da Rede Globo – em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Minas Gerais.

Neste dia, caberá ao Executivo federal, por meio do Ministério das Comunicações e da Casa Civil, aceitar ou não os pedidos de renovação, por mais 15 anos, e submeter sua decisão do Congresso Nacional, que tem a palavra final no processo.

O que pouca gente sabe é que tal procedimento, de tamanha importância para o país – é redundante afirmar o papel político, econômico e social que os meios de comunicação, sobretudo a TV, desempenham em nossa sociedade – será nada mais do que um rito burocrático. Mas, para evitar que a data passe em branco, movimentos sociais e entidades ligadas à luta pela democratização da comunicação planejam promover manifestações e chamar a sociedade para debater o modelo das concessões públicas de radiodifusão. Um modelo que contribuiu de forma decisiva para fazer da Globo o império que ela é hoje.

“O mercado de televisão no Brasil, especificamente, não era oligopolizado até a década de 1970. Chateaubriand tentou até monopolizar, mas a Globo, durante a ditadura militar, atualiza o projeto das elites do setor e do governo no período anterior. Dadas as condições técnicas, ela pôde ocupar um espaço que os Diários Associados do Chatô não podiam sequer sonhar”, esclarece a cientista social da Universidade Federal de Pernambuco Maria Eduarda Rocha. Ela atribui a concentração de capital e produção da Rede Globo à própria construção da indústria cultural no Brasil, que pressupõe centros produzindo para um vasto território.

Maria Eduarda cita ainda como fatores que foram fundamentais para a estruturação da Globo na década de 1960: o famoso acordo com a Time-Life, realizado em 1962, responsável por injetar capital estrangeiro na emissora, algo que ia contra a legislação vigente. “Há um fator mais forte que é a relação entre o empresariado da cultura e governo militar, que era muito orgânica. O governo permaneceu como maior anunciante, o que era um grande instrumento de controle, sendo que a Globo foi a grande captadora de verba publicitária do regime”, sustenta.

Mas não foi só à época da ditadura que o regime de concessões e o Estado favoreceram a Globo. Durante o governo Sarney (1985-1989), o ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães promoveu uma verdadeira farra de distribuição de concessões na área de radiodifusão. Paulino Motter, doutor em Ciências Políticas, na dissertação de mestrado A batalha invisível da Constituinte, mostra que em três anos e meio Sarney distribuiu 1.028 outorgas, aproximadamente 25% delas no mês de setembro de 1988, que antecedeu a promulgação da Constituição. Quase todos os beneficiados foram parlamentares que, direta ou indiretamente, receberam as outorgas em troca de apoio político aos cinco anos de mandato e o regime presidencialista. Motter mostra que, dos 91 constituintes que receberam ao menos uma concessão de rádio ou de televisão, 82 (90,1%) votaram a favor do mandato de cinco anos.

Além de beneficiar a Globo e Sarney, ACM também aproveitou sua estada no governo federal para incrementar sua influência na área da comunicação na Bahia. A maior parte das concessões das emissoras que integram a Rede Bahia é dessa época. Antônio Carlos Magalhães Júnior é o presidente da Rede Bahia. Em 1987, a TV Bahia, do grupo, se tornou afiliada da Rede Globo, desbancando a TV Aratu, que retransmitia o sinal da emissora da família Marinho havia 18 anos.

Perpetuação do oligopólio

O processo constituinte não foi somente um palco generoso onde parlamentares receberam concessões para apoiar Sarney. O lobby pesado dos radiodifusores garantiu condições bastante especiais aos prestadores de serviço no rádio e na TV. A Constituição Federal estabelece que, para uma concessão não ser renovada, é necessária a deliberação de dois quintos do Congresso Nacional em votação nominal. E, para ser cancelada, requer decisão judicial, contrariando assim a regra geral da prestação de serviço público.

Mas foi durante o regime militar, que regulamentou o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) promulgado em 1962, que foram definidas as primeiras regras para outorgas e instalação de emissoras. O CBT, em geral, buscava facilitar ao máximo a ocupação de todas as freqüências disponíveis e abria com isso um flanco para a expansão do setor privado, sem garantias ao interesse público.

Em seu livro A história secreta da Rede Globo, o jornalista Daniel Herz escreveu que a legislação brasileira para a radiodifusão “é carente de definições de princípios” e prende-se “quase que exclusivamente a definições técnicas e a tributações de competência”. “O Código omite-se na definição de princípios que orientem o uso privado desse recurso (…) de domínio público”, afirma.

Em 1979, ao apresentar as diretrizes para a radiodifusão, o presidente João Figueiredo reforçou ainda mais o caráter privatista do serviço, determinando que a radiodifusão é uma atividade eminentemente privada, que o papel do Estado é “meramente supletivo” e que a concessão de canais de radiodifusão deve levar em conta, além dos critérios técnicos e legais, a viabilidade econômico-financeira dos empreendimentos.

A Constituição de 1988 tentou restabelecer o caráter público da comunicação. O artigo 221, por exemplo, diz que a produção e programação das emissoras de rádio e TV devem atender preferencialmente a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas – princípios estes definidos desde o CBT; devem promover a cultura nacional e regional e o estímulo à produção independente; e respeitar os valores éticos e sociais das pessoas e da família. Apesar disso, o caminho para o descumprimento de tais normas foi deixado totalmente aberto, dependendo de regulamentação posterior, e por isso os artigos da Constituição referentes à comunicação seguem ignorados pelos concessionários e pelo Poder Executivo.

Ausência de critérios

Se os princípios constitucionais para a operação das emissoras de rádio e TV são ignorados no dia-a-dia, a situação para a escolha das empresas que poderão explorar o serviço de radiodifusão não é nada melhor. Segundo a legislação, a concessionária deve ser escolhida mediante processo de licitação – o que, em sua origem, pretendia garantir tratamento isonômico aos participantes.

Ao longo dos anos, no entanto, ficou claro, pelos sucessivos decretos que alteraram os dispositivos do CBT, que o foco para a escolha dos concessionários era meramente econômico. Em 1996, o decreto 2.108 estabeleceu para o critério de pontuação que 40% dos pontos da licitação vêm do prazo para iniciar a execução do serviço em caráter definitivo – enquanto 30% vêm do tempo destinado a programas culturais, artísticos e jornalísticos gerados na localidade; 15% do tempo destinado a programas jornalísticos, educativos e informativos e 15% do tempo destinado a serviço noticioso.

A lei também exige dos interessados documentação relativa à sua qualificação econômico-financeira, incluindo balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social que comprovem a boa situação financeira da empresa. Ou seja, os critérios favorecem o poder econômico e as empresas grandes e já estruturadas, em detrimento da diversidade e pluralidade de vozes.

“Ao introduzir a licitação para a concessão de outorgas, privilegiando o aspecto econômico, do ponto de vista contratual, e abandonando outros critérios, o mais importante ficou esquecido”, acredita Venício Lima, pesquisador e professor da Universidade de Brasília. “E assim a comunicação comercial se consolidou: sem nunca obedecer às prioridades para a radiodifusão definidas na própria lei”, completa.

Aliado à ausência de mecanismos claros que impeçam o monopólio dos meios de comunicação – também proibido pela Constituição –, o privilégio ao aspecto econômico das empresas resultou num quadro de elevada concentração da propriedade dos meios no país.

Dados do estudo Os Donos da Mídia, do Instituto de Estudos e Pesquisa em Comunicação, mostram que somente seis redes privadas nacionais de televisão aberta e seus 138 grupos regionais afiliados detêm a propriedade de 667 veículos de comunicação, entre emissoras de TV, rádios e jornais. O campo de influência dessas redes privadas se capilariza por 294 emissoras de televisão VHF que abrangem mais de 90% das emissoras nacionais. Somam-se a elas mais 15 emissoras UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 emissoras FM e 50 jornais diários. Somente as Organizações Globo detêm 32 concessões de TV e possuem 113 afiliadas no país, obtendo 54% da audiência.

A ausência de critérios se estende após a obtenção da concessão. A venda de outorgas, por exemplo, permitida por lei, é quase um processo de transferência privada. “Nas transferências, não há nenhum tipo de fiscalização da autoridade pública. Eu sou concessionário, você tem interesse, eu vendo minha outorga pra você ou para qualquer empresa ou pessoa, de acordo com o meu interesse”, explica Lima.

Pior na renovação

Na avaliação do professor da UnB, a situação é pior nos processos de renovação das concessões. Além da não-renovação precisar da votação nominal de dois quintos do Congresso, Lima faz duas observações. “Em primeiro lugar, mesmo se as concessionárias ignoraram ao longo dos anos os princípios que regem a radiodifusão, previstos no artigo 221, isso não aparece como critério. Em segundo, embora haja uma série de exigências formais e técnicas, de comprovação fiscal da empresa para a renovação, o processo demora tanto que as comprovações perdem a validade. Na prática, as concessões acabam se transformando em propriedade permanente e as renovações são pró-forma”, avalia.

A obrigação das concessionárias que desejarem a renovação dos prazos é dirigir requerimento ao Ministério das Comunicações no período entre 180 e 120 dias antes do término do prazo. Mas há casos de processos de renovação que saem do Executivo 14 anos depois de abertos, ou seja, 4 anos depois de vencido o prazo que deveria ter sido renovado. Segundo relatório da subcomissão de concessões da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados (CCTCI), o tempo total médio de tramitação no Poder Executivo é de 6,5 anos – sendo que o prazo de validade da outorga, no caso do rádio, é de dez anos. “Assim, na média, cabe ao Congresso Nacional apreciar apenas 3,5 anos das outorgas, visto que os 6,5 anos restantes já decorreram quando o processo fica finalmente disponível para apreciação pela Câmara”, diz o relatório.

Para seguir funcionando, as empresas refugiam-se nos decretos que regem os processos de renovação, todos anteriores à Constituinte. Um deles diz que, “caso expire a concessão ou permissão, sem decisão sobre o pedido de renovação, o serviço poderá ser mantido em funcionamento, em caráter precário”. A previsão da precariedade, sem qualquer prazo ou limite, conflita com o CBT, que afirma que “expirado o prazo de concessão ou autorização, perde, automaticamente, a sua validade a licença para o funcionamento da estação”.

“Se, para seguir funcionando, uma emissora não precisa que o processo previsto na Constituição chegue ao fim, o que vale na prática é o simples ato de protocolar um documento em que solicita a renovação. E, se o Ministério das Comunicações, por sua morosidade ou incompetência, não dá seguimento aos processos de renovação das outorgas, ele passa, na prática, a invadir a competência do Congresso Nacional, possibilitando às emissoras funcionarem sem terem a sua concessão renovada”, acredita a jornalista Cristina Charão, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, organização da sociedade civil que luta pelo direito à comunicação.

Fórum solicitou ao ministério a informação de se as emissoras que terão sua concessão vencida no dia 5 de outubro haviam encaminhado este pedido. Mas não obteve resposta.

Às escuras

Como já dito, não bastasse a falta de transparência nos processos de concessão e renovação das outorgas, os 15 anos que as emissoras de TV e os dez anos que as de rádio exploram o serviço de radiodifusão são de total “rédeas soltas”. Não há nenhum tipo de fiscalização, por exemplo, se as emissoras destinam o mínimo de 5% obrigatório do horário de sua programação diária à transmissão de serviço noticioso. Ou se respeitam o limite máximo de 25% de seu horário à publicidade comercial. Menos ainda se reservam cinco horas semanais para a transmissão de programas educacionais. Acredite ou não, o decreto que regulamenta o CBT impede que rádios e TVs transmitam programas que atentem “contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento” e veiculem espetáculos, trechos musicais cantados, quadros, anedotas ou palavras contrárias “à moral familiar e aos bons costumes”. Mais distante da realidade da nossa TV aberta impossível.

Outra norma que passa ao largo da fiscalização do governo é o artigo 54 da Constituição, que proíbe aos parlamentares do Congresso Nacional “ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada”. O Regimento Interno da Câmara também proíbe a votação dos parlamentares em assuntos que sejam de seu próprio interesse.

Um estudo de Venício Lima acerca da última legislatura, no entanto, apontou que 10% dos deputados federais eram controladores de empresas de radiodifusão. No ano de 2004, a Comissão da Câmara com atribuição para examinar as outorgas e renovações do serviço era composta por 33 deputados, dois quais 15 figuravam na lista do Ministério das Comunicações como concessionários de 36 emissoras de rádio e três canais de televisão.

“Isso cria um problema gigante”, afirma Lima. “Há uma contaminação do processo, pelo fato de, tradicionalmente, haver vários parlamentares com interesse direto em jogo, para aprovar ou prorrogar concessões, compondo a CCTCI”, diz. A própria subcomissão de concessões da CCTCI admitiu que, até agora, as renovações eram aprovadas em bloco sem obedecer a nenhum critério. Alguns parlamentares pegos votando em suas concessões alegaram justamente a votação em bloco como defesa.

Recentemente, o ministro das Comunicações Hélio Costa – que já foi proprietário de uma emissora no interior de Minas Gerais – garantiu que não há parlamentares ocupando cargos de direção em emissoras de rádio e TV. “Mas a questão de ser membro da diretoria ou apenas sócio da emissora é uma filigrana. Se é parlamentar, se transforma em poder concedente. Então há um impedimento ético se participa de decisões que lhe interessam”, acredita Lima.

Apesar da garantia de Costa, no início de agosto o MiniCom anunciou um recadastramento de todas as concessionárias de radiodifusão. As empresas terão 60 dias para enviar informações sobre composição do capital, quadro de diretores, procuradores com poder de gerência, endereço e nome fantasia. O último recadastramento foi em 1973. Não é demais lembrar que, por lei, qualquer mudança no quadro societário e contrato social da empresa deveria ser solicitada previamente ao Ministério. Sinal de que não foram. 

Fonte: Bia Barbosa, com colaboração de Glauco Faria. Matéria publicada na revista Fórum