Contra o fator previdenciário

Após aprovação no Senado, tramita na Câmara o Projeto de Lei 3299/2008 (ex-PLS 296), do senador Paulo Paim (PT-RS), que altera a forma de cálculo da aposentadoria por tempo de serviço/contribuição. O PL 3299 põe fim ao maior dos crimes de Fernando Henrique contra a população trabalhadora: o fator previdenciário, criado em 1999 para deprimir o valor do benefício mediante o uso coordenado de três mecanismos perversos.
 
O primeiro é a imposição de perdas com base na idade do trabalhador na hora da aposentadoria: um homem que trabalhe e contribua por 36 anos terá a média de seus salários de contribuição multiplicada por 0,843 (redução de 15,7%) caso aposente-se aos 58. O segundo é a atribuição de peso maior à idade que ao próprio fato gerador do benefício (o tempo de serviço/contribuição): um homem que trabalhe e contribua por 40 anos terá perda maior (16%) que o do primeiro exemplo, caso se aposente apenas um pouco mais jovem, aos 55 (1). O terceiro é a consideração da expectativa de sobrevida no momento em que o trabalhador se aposenta: descartada a hipótese de genocídio, essa variável sempre cresce, trazendo perdas até mesmo aos que optam por adiar a aposentadoria.
 
A injustiça inerente a essas situações é agravada por vivermos num país onde a imensa maioria da população não escolhe as datas de início e término de sua vida laboral. Ninguém começa a trabalhar aos 14/15 anos por gosto, nem é por deleite que quem começou a trabalhar nessa idade aposenta-se – com inteira justiça – ao redor dos 50. Quem começa a trabalhar cedo se dedica, em regra, a trabalhos que se tornam penosos com a idade. Reduzir proventos de pedreiros, telefonistas, metalúrgicos ou vigilantes por se aposentarem antes dos 63 anos (2) é uma iniqüidade, até porque, para esses trabalhadores, é difícil, a partir dos 45 anos, e quase impossível, após os 55, encontrar emprego.
 
O fator previdenciário é um diabólico e indefensável instrumento de confisco da renda do trabalho. E a sociedade brasileira está – antes tarde do que nunca – se dando conta disso. Não é por outra razão que o PL 3299 tem parecer favorável de seu relator na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, o deputado Germano Bonow (DEM-RS), e que o presidente Lula declarou à TV Brasil em 17 de setembro que, se ele for aprovado, não o vetará. Mas é preciso ter cuidado, pois já começam a surgir propostas destinadas a manter seus efeitos.
 
A primeira é a fixação de uma idade mínima para aposentadoria por tempo de serviço/contribuição. A idéia é defendida pelo economista Guilherme Delgado, do IPEA, a partir de um estudo elaborado para o Conselho Nacional de Previdência Social, em 2006 (3). Ele propõe a imposição imediata de um limite etário de 60(h)/55(m) anos, com elevação progressiva até 65(h)/60(m) em 2030 (4). Se o fator previdenciário é injusto por penalizar quem se aposenta antes dos 63 anos, muito pior é proibir o trabalhador de aposentar-se antes dos 65. Mesmo na versão mais suave da Proposta de Emenda Constitucional 10/2008, de Paim, que a fixa em 51h/46m anos em 2008 com aumento gradual até 60h/55m em 2035 (5), a idade mínima representaria um retrocesso, inclusive simbólico. Sarney, Collor e FHC foram derrotados pelos sindicatos quando tentaram impô-la; não tem cabimento que seja Lula a arcar com a responsabilidade histórica de fazer contra os trabalhadores o que nenhum governo da elite branca conseguiu. Para a preservação de sua biografia e das de Paim e Delgado (dois históricos defensores da Previdência pública), essa idéia deve ser descartada.
 
A segunda é a chamada "fórmula do ponto fixo". Elaborada pelo Ministério da Previdência, ela fixa o tempo de serviço/contribuição exigível do trabalhador em 1,87 vezes sua expectativa de sobrevida. Esse critério reúne a imprevisibilidade do fator previdenciário, a rigidez da idade mínima e a injustiça de ambos. Seus resultados são surreais: consideradas as expectativas de sobrevida de 2006 (6), quem começasse a trabalhar aos 14 anos precisaria de 43 de contribuição e trabalho ininterruptos para se aposentar aos 57; mas quem começasse a trabalhar aos 26 poderia aposentar-se com 36 anos de serviço/contribuição aos 62. Isto é: para seus idealizadores, a circunstância de o trabalhador aposentar-se aos 57 ou aos 62 anos é mais importante que a de ter começado a trabalhar aos 26 ou aos 14 – mesmo que o que começou aos 14 ainda tenha 6 anos a mais de serviço e contribuição.
 
O fator previdenciário precisa ser extinto. Mas para que sua revogação seja uma vitória real – a única que ela terá tido no governo Lula – para a população trabalhadora, é preciso barrar desde logo outras propostas de igual espírito. Não se pode, a pretexto de evitar que o trabalhador sofra perdas na aposentadoria, proibi-lo de se aposentar.
 
(1) Números extraídos da tabela de fator previdenciário de 2008 do Ministério da Previdência.
(2) Idade a partir da qual o fator previdenciário deixa de acarretar perdas, considerando o tempo mínimo de contribuição (35 anos para homens, 30 para mulheres) e a tabela do Ministério da Previdência para 2008.
(3) www.ipea.gov.br/pub/td/2006/td_1161.pdf
(4) http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2008/1/23/noticia.406993/
(5) http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/getHTML.asp?t=12731
(6) www010.dataprev.gov.br/cws/contexto/conrmi/tabES.htm
 

Escrito por Henrique Júdice
Assistente de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), advogado (OAB/RS 72.676) nas áreas trabalhista e previdenciária e ex-técnico previdenciário do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). E-mail: henriquejm@gmail.com