FSM 2009: Entre estandartes e bandeiras, os tambores da paz

Por Bernardo Kucinski*

Uma após outra, as portas de ferro começaram a baixar. Às três da tarde, na Praça da República, no centro de Belém, o medo pareceu tomar conta dos lojistas. Rufavam os primeiros tambores de grupos que se dirigiam ao ponto de encontro. Será que vai dar baderna? Muita polícia por toda a parte.

Logo, o trânsito foi interrompido. Veio das ruas uma calmaria e com ela o medo virou curiosidade, expectativa. Olhos grudados nos vidros. Aglomerações nos desvãos e nos balcões dos sobrados azulejados da avenida Nazaré.

Então, caiu a chuva, grossa. Os céus despejaram uma hidroelétrica inteira sobre a cidade. Será que não teria marcha? Teve. E foi uma marcha respeitável. Enorme, ao ponto de ser difícil estimar o número de participantes. Sei que pelo meu ponto de observação passou gente durante duas horas. Num determinado momento, ao surgir de novo umas palavras e ordem que eu já havia visto, até pensei que haviam dado a volta e começado tudo de novo. Mas não. Era um pessoal desgarrado de seu grupo. Foi mesmo uma grande marcha. ”Só perde para a do Cirio de Nazaré”, me disse um morador daqui.

Apesar do tamanho, foi tudo muito pacato. Muito mais uma caminhada do que uma marcha. Calma, sem raivas. De vez em quando um grupo de tambores dava mais ânimo aos caminhantes, muitos deles ensopados. Não foi uma marcha especialmente exuberante. Alegre, como deve ser, mas não feérica, como foi a do primeiro Fórum.

Predominaram as palavras de ordem a favor. A favor da paz, principalmente, demandada por vários grupos, inclusive o PT, que para isso valeu-se de uma bandeirinha branca. Um dos grupos chamava-se “agentes pela paz.”

Muitas bandeirinhas pequenas brancas ou roxas ostentavam apenas a palavra paz, de forma a lembrar o perfil de um santo. Um dos estandartes dizia: “Basta, eu quero paz.” É verdade que houve pedidos de paz que mais pareciam chamamento à guerra, como o do Instituto de Pesquisa e Ação pela Paz que dizia: “Paz só com justiça social.” Paz foi um dos temas recorrentes.

Depois da paz, o que mais se pediu nesta marcha foi emprego. A crise parece ter sacudido o movimento sindical, que apareceu em peso, formando vários grandes blocos, da CUT, da UGT, do Conlutas, de sindicatos de categorias, como os químicos, os bancários. Até os mais altos dirigentes da CUT marcharam. Pelo jeito estão mesmo assustados com as dimensões da crise.

Não ouvi nenhuma vez o clássico “abaixo o imperialismo”. Mas soou bem alto, graças a um potente carro de som, o previsível "abaixo o governo Lula", do PSTU. Mais radical, já nos finalmente da marcha, um grupo de punks, chamado justamente Crítica Radical, bradava “fora a política. Não vote!"

Outras bandeiras contra: contra a corrupção, empunhada por um solitário, e contra a homofobia, esta desfraldada em grande estilo, com todas as cores do arco-íris, sob o comando de um porta-bandeiras de penteado funk.

Trouxeram suas palavras de ordem nesta caminhada muitos movimentos de reivindicações especificas, entre eles um vistoso Movimento Nacional de Luta pela Moradia e o mais vistoso ainda movimento feminista todo de roxo pedindo o direito ao aborto. Um segundo movimento feminista denunciou a “globalização machista”, propondo para acabar com ela nada menos que uma “revolução feminista.”

Os quilombolas marcaram presença, exigindo a demarcação de suas terras em Alcântara e Jumbuaçu. A Fetagri, dos trabalhadores agrícolas pedia regularização das terras dos pequenos proprietários.

De vez em quando surgia um grupo de índios, batendo o pé. Em geral pintados de preto. Não pareciam exigir nada de especial e alguns nem pareciam muito índios. De repente um grupo de cegos. Lá no final um bando de ciclistas e no fecho, um boneco gigante do Sarney com expressões do tipo “Sarney nunca mais.”

Um grupo de jovens de Belém se auto-denominou "Juventude Indignada" ou, no inglês macarrônico deles, "Indignity Youth". Quando perguntei qual o objeto da indignação a mocinha me respondeu que cada um tinha o seu. Um coletivo formado de broncas individuais. É o pós-moderno em seu estado perfeito.

Como em todo Fórum, teve um pouco de tudo. Vítimas do acidente da TAM, exigindo justiça; defensores do SUS simplesmente comemorando; grupos de folklore, e até os vendedores de artesanato da Praça de República trouxeram lá a sua faixa de adesão. Não houve o poderoso clamor verde que se esperava. O partido verde desfilou fraco, desbotado. O Greenpeace arrastou um gigantesco e ridículo boi de plástico inflado, decorado com bandeiras de vários países, sem que se entendesse sua mensagem. Tive que perguntar e o rapaz com sotaque gringo explicou que era o boi que devastava a Amazônia e as bandeiras eram os países que importavam a carne de boi. Também apareceu o VEM, vegetarianos em movimento, com sua proposta que resolveria tudo isso de modo mais simples.

Vieram os que se opõem às hidroelétricas na Amazônia, e também os que as defendem. Os adeptos da fisioterapia ocupacional e os da economia solidária. Veio um pequeno grupo de adolescentes, não deviam ter mais de 16 anos, empunhando uma bandeira do PCBr” com a demanda “por um governo de trabalhadores comunista e revolucionário". Enfim, vieram todos.

Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

Fonte: Agência Carta Maior