Novela da Globo faz caminho (desrespeitoso) das Índias

Por Washington Araújo, no Observatório da Imprensa

Convenço-me cada vez mais que Caminho das Índias é o folhetim mais fantasioso — e também desrespeitoso para com outra cultura — jamais produzido pela televisão brasileira. Se existe algum traço de realidade naquela trama, esse traço ficou submerso no sagrado rio Gânges.

Visitei Nova Déli em dezembro de 1987, quando pude participar da dedicação a Deus e à humanidade do Templo Bahá’í, o belo templo de nove lados na forma de flor de lótus, ladeado por igualmente 9 espelhos d´água. E tenho bem viva na memória a noite do dia 27 de dezembro daquele ano quando ninguém menos que Ravi Shankar, o grande músico e poeta indiano, apresentou a sinfonia especialmente criada por ele para aquela ocasião.

São as imagens daquela Índia que vi e vivi que não se casam, nem à força, com a Índia que estou me esforçando para ver e quem sabe vivenciar em nossa telinha mágica que é a TV.

Voltando ao folhetim das 8 da noite na TV Globo. Em pouco mais de uma semana que estive em Déli e em Agra, onde fica o Taj Mahal, não encontrei qualquer sinal de opulência, riqueza material, balés artísticos e trajes esvoaçantemente coloridos nas ruas daquelas cidades. Ao contrário, testemunhei muita miséria, pobreza ao cubo, caos no trânsito, multidões se sobrepondo umas às outras. O barulho de buzinas, nas mais variadas tonalidades e em volume sempre muito além do usualmente aceitável, bem caracterizaram qualquer passeio nas ruas de Déli.

Claro que existem famílias abastadas, afinal é uma das mais pujantes economias do planeta nessa primeira década do século 21, além de estar na vanguarda da revolução tecnológica, notadamente no campo da informática. Mas assim posto, fica muito difícil ser condescendente com a trama de Glória Perez, diga-se, uma das mais brilhantes autoras de telenovela do Brasil.

Padrão farsesco

Nessa história há um padrão de farsesco nos detalhes. Chama atenção o destaque dado às superstições e crendices que da forma como são apresentadas parecem derivar da sagrada religião hindu. E isso não é verdade e mesmo, não se sustenta em fatos. Colocar a questão do dote para o casamento de forma folclorizada é um claro nonsense da trama.

Um indiano abastado deixar de sair de casa se a primeira imagem que vir ao colocar os olhos na rua for o de uma viúva ou de algum intocável é de rolar de rir. Desfazer uma maldição nupcial casando o personagem com uma bananeira, uma árvore, um animal, é rematada tolice. Não vi nada disso na Índia e se tais costumes e práticas algum dia existiram devem estar ainda enredados na milenar noite dos tempos…

Minha perplexidade é tal que me faz imediatamente pensar em um paralelo possível. Imaginemos que produtores de Hollywood resolvessem fazer um seriado de costumes tendo como pano de fundo o Brasil dos dias atuais e então…

— colocassem homens vestidos apenas com sungas e mulheres trajando minúsculos biquínis ou apenas aqueles do tipo fio-dental em plena avenida Paulista ou nos arredores da Candelária, na avenida Rio Branco ou entrando no Ministério da Justiça em Brasília?

— colocassem pais ensinando os filhos a se precaverem e a temerem a Sucupira, o Saci-Pererê, o Mula-sem-cabeça, o chupacabras, o lobisomem, os ETs de Varginha?

— colocassem mulheres baianas vestidas com os vestidos das baianas do acarajé em pleno Teatro Castro Alves e homens com fantasias do bloco Filhos de Gandhi deitando discursos em inaugurações do governo?

— colocassem gurus, videntes, pais-de-santo visitando apartamentos de algumas famílias abastadas do Leblon (Rio) ou dos Jardins (SP) para tratar dos dias propícios aos negócios, ajustar casamentos entre famílias e os donos das casas sempre a um passo de se prostarem ante seus pés em sinal de reverência?

— colocassem cobras, onças, tamanduás, chimpanzés e multicores araras nas ruas de Belo Horizonte e na Boca Maldita de Curitiba, par a par com os citadinos?

— colocassem mães reverentemente ensinando os filhos adolescentes a venerarem Nossa Senhora (da Conceição, de Fátima, de Aparecida, de Lourdes, do Perpétuo Socorro, de Guadalupe, da Anunciação, dos Prazeres, dos Navegantes etc.) e também a galerias dos santos, com São Francisco (de Assis, de Canindé, de Xavier), São João (Batista, do Latrão, de Sena), quem sabe os adoradores da Medalha Milagrosa ou o pequenino Menino Jesus de Praga?

— pais, irmãos, filhos, netos, avós de repente e sem mais nem menos, logo após ouvirem uma boa notícia transmitida pelo pai da família, se levantassem para bailar na sala em sinal de vivo contentamento?

Esquizofrenia na telinha

Daria para acreditar nas situações acima mencionadas? A resposta certamente seria a mesma para essa outra pergunta: daria para acreditar na Índia de Glória Perez?

A televisão brasileira vive um particular momento de viva esquizofrenia. Saem de um folhetim pintado com as cores sombrias de páginas policiais, após haver domesticado o ouvido de milhões de brasileiros com o repetitivo tango pós-moderno pontuando aquelas incansáveis animações de abertura para o frenesi multicor da música techno embalado por imagens digitalmente multiplicadas de templos e deuses venerados na Índia e em outros países asiáticos.

Neste ponto vejo um profundo desrespeito pelo Sagrado em se tratando daquela particular nação do planeta. Brhama, Vishnu, Krishna, Shiva, Ganesha, são tão sagrados no inconsciente coletivo da raça quanto às aparições do Anjo Gabriel a Maria, a imagem de Jesus e das Nossas Senhoras, o Santo Sudário e a Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, a Kaaba dos muçulmanos em Meca, o templo budista de Bohodour na Indonésia, o muro das Lamentações dos judeus na Terra Santa.

Ousaríamos misturar essas imagens sacras do cristianismo, judaísmo, budismo e islamismo com o movimento frenético dos passistas do Marquês de Sapucaí e tendo como trilha sonora a nossa bem reputada música carnavalesca?

Se existe algo que impede a criação de uma cultura genuína de paz entre todos os seres humanos do planeta é, sem dúvida alguma, a forma grosseira como retratamos o que não entendemos ou o que é diferente de nós. Vale ainda, pois dificilmente prescreverá, a regra de ouro de todas as religiões: não devemos fazer aos outros aquilo que não desejamos que seja feito a nós.