Apesar da obrigatoriedade, muitas escolas não trabalham com História e Cultura Afro-brasileiras

Educação: Apesar da obrigatoriedade, muitas escolas ainda não trabalham com História e Cultura Afro-brasileiras

Escultura “Tambor”, instalada em 9 de abril na praça Brigadeiro Sampaio, no Centro Histórico da capital, é a primeira obra do Museu do Percurso Negro em homenagem aos ancestrais africanos e aos negros gaúchos |

Foto: Divulgação

Um dos primeiros atos oficiais do presidente Lula foi assinar a Lei Federal 10.639 em 2003. Ela alterou dois artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tornando Obrigatório o ensino de história e cultura Afro-brasileiras. Além de incluir nos calendários escolares o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, o texto exige que sejam abordados em sala de aula temas como a luta dos negros no nosso país e o papel da etnia na formação da sociedade nacional, “resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. A mudança deveria se estender a todo o currículo, “em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras”.

Mas basta conversar com alunos da rede estadual de ensino para notar que a legislação nem sempre é cumprida. “No colégio, a gente nunca estudou nada sobre a África. O máximo que o professor de História fez foi citar o Apartheid, mas não estudamos nada do caso em si”, conta Danilo Pereira dos Santos, 16 anos, aluno da 8.ª série, há seis anos na Escola Estadual de Ensino Fundamental Euclides da Cunha. Na rede municipal, o quadro é mais promissor. Karina de Freitas tem 18 anos, cursa a 8.ª série no Centro Municipal de Ensino dos Trabalhadores Paulo Freire e afirma que já estudou o continente africano várias vezes em aula: “Vimos elementos da cultura e o modo de vida deles, e agora estamos pesquisando alguns países, vendo seus recursos naturais, coisas da geografia local”.

Obstáculos históricos – Edgar Barbosa, responsável pela Educação Afro-brasileira na Secretaria Estadual da Educação (SEC), admite que “houve certa morosidade” para pôr a lei em prática. “Mas é preciso compreender que o RS tem cerca de 50 mil professores atuando em 2.600 escolas estaduais. Para fazer com que a lei chegasse a todas elas, o estado teria de fazer uma verdadeira operação de guerra, e nós não temos verba para isso. Na SEC, apenas o nosso departamento cuida da área, e há problemas de recursos e de mudança de pessoal”, justifica.

Mas os entraves vão além de questões orçamentárias. “Muita gente acha que racismo nem existe”, comenta Edgar. Manuel da Silva, assessor de Relações Étnicas da Secretaria Municipal da Educação da Capital (Smed), concorda e mostra que o problema é secular: “Os primeiros decretos que regulavam a instrução pública no Brasil vetavam o acesso à educação aos escravos. Com o fim da escravidão esse preceito permaneceu enquanto prática objetiva, pois a população negra continuou afastada das escolas. Foi assim até a década de 1930, quando surgiram leis especificando que a educação pública é acessível a todos, sem distinção”.

Curso lento – Tanto a Smed quanto a SEC afirmam terem focado seus esforços na capacitação dos professores. Segundo Manuel, o município organiza processos formativos desde 2004, e a lei está cada vez mais presente nas salas de aula. “Não temos uma estatística específica, mas nas 96 escolas municipais ela possui uma inserção maior ou menor nos currículos. Algumas realizam ações pontuais na Semana da Consciência Negra, mas pelo menos dois locais terão grupos de estudos voltados à temática afro-brasileira – mesmo que influenciados pela Copa do Mundo deste ano.” Atualmente, estão sendo produzidos os Planos Político-pedagógicos da rede municipal, e a Smed exigiu que todas as escolas incluam neles as demandas da Lei Federal n.º 10.639. “O que repercutirá em uma intervenção curricular mais incisiva”, afirma Manuel da Silva.

Em relação ao ensino estadual, Edgar Barbosa garante que as 30 Coordenadorias Regionais de Educação (CREs) receberam a formação necessária. “Oferecemos cursos e capacitamos todas as CREs, agora elas são responsáveis por multiplicar o conhecimento nas regiões de suas competências.” O que, pelo visto, não acontece como deveria. A SEC criou um instrumental quantitativo e qualitativo para avaliar o grau de inserção da lei no estado. Resultado: “Das 2.600 escolas, apenas 1.548 responderam”, revela Edgar.

Haverá uma segunda chamada às outras 1.052, às quais será reenviado o questionário no próximo semestre. Caso alguma instituição não responda novamente, o Ministério Público (MP) será acionado para cobrar explicações.

De acordo com Edgar, os melhores dados foram obtidos na região de colonização alemã, principalmente em Santa Rosa e Estrela. “Já não se pode dizer o mesmo de Caxias do Sul, zona de italianos, onde há pressão por parte de etnias que estão sedimentadas e não querem abrir mão do espaço conquistado nos currículos”, assinala.

Olho vivo – Mas, se o cumprimento das leis fosse facultativo, não haveria sentido de elas existirem. Pensando nisso, o MP gaúcho lançou no último dia 22 uma cartilha para fiscalizar e orientar os gestores públicos sobre a legislação. Manuel da Silva lembra que não se trata de respeitar o texto apenas onde há negros, pois “está se falando de uma discussão nacional sobre a composição da sociedade brasileira”.

Onde está em prática, a lei já traz bons frutos. “Não temos dados objetivos, mas, subjetivamente, verificamos que a autoestima dos estudantes negros está fortalecida. Isso se manifesta nas produções textuais e gráficas. Crianças negras não usam mais o lápis cor de pele e desenham suas famílias com o marrom ou o preto, reforçando sua identidade. Melhorou também o convívio entre alunos de diferentes cultos cristãos e os praticantes das religiões de matriz africana”, comemora Manuel da Silva. O mérito da lei é inquestionável, só falta ela ser cumprida.

Ferramenta de mudança

Professores se queixam de que não há bibliografia e material de apoio sobre a temática afro-brasileira. Para tentar reduzir esse problema, o Departamento de Educação e Desenvolvimento Social da Pró-reitoria de Extensão da UFRGS, a partir do Programa Educação Antirracista no Cotidiano Escolar e Acadêmico, realizou o projeto Viajando pela África com Ibn Battuta. “Baseado no testemunho desse viajante marroquino, fizemos um documentário didático com reconstituição de imagens históricas e relatos de africanistas”, conta Rivair Macedo, professor do Departamento de História e um dos responsáveis pelo projeto.

Além do vídeo, foi desenvolvida uma cartilha de estudos para alunos e um livro de pesquisa para professores. “Fizemos também um site, que possivelmente estará no Portal do MEC ainda neste ano, que possibilitará assistir ao documentário e baixá-lo. Lá estará disponível todo o material usado no vídeo e uma lista de referências bibliográficas”, revela o professor.

A verba de produção veio do programa federal Uniafro, cujo objetivo é estimular projetos universitários que visem implementar a Lei Federal n.º 10.639. A intenção é que o MEC, detentor dos direitos autorais, reproduza e distribua o documentário e os livros a todas as escolas públicas do país. Para Rivair, o grande mérito da ação é promover uma visão diferente da que se costuma ter sobre a África: “Uma forma de se combater o racismo é discutir as imagens, pois o racismo se ancora nelas, sejam iconográficas ou mentais”.

Ariel Fagundes, estudante do 6.º semestre de Jornalismo da Fabico

Fonte Jornal da Ufrgs