STF abre brecha para que pacientes paguem por atendimento no SUS

Em Giruá, no Rio Grande do Sul, há pouco mais de 17 mil habitantes. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, a rede de saúde do município é composta por quatro postos de saúde da família (PSFs) e um posto central que atende especialidades. Além disso, há também outros cinco postos em distritos do interior, onde ocorre atendimento uma vez por semana. Existe um único hospital em Giruá, que não é público e sim filantrópico, mas atende pelo SUS e destina cerca de 32 dos 50 leitos ao serviço público de saúde, por meio de convênio.

De acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proferida em maio, passa a ser instituída em Giruá a chamada “diferença de classe” no serviço público de saúde. Isso significa que qualquer habitante da cidade que tenha dinheiro poderá pagar por determinado serviço nesse único hospital da cidade, que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O paciente pode comprar um leito individual ou a possibilidade de ser operado por determinado médico de sua preferência. O pagamento pode ser feito ao hospital e também ao profissional escolhido.

Cremer entra com ações
A ação para permitir essa diferenciação de classe partiu do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) e obteve decisão favorável da Vara Federal de Santo Ângelo (RS). Há outras 11 ações do Cremers contra 10 municípios e uma contra o governo do estado, que também é responsável pela gestão da saúde em cidades gaúchas.

Prefeitura Reage
A prefeitura de Giruá entrou com uma ação na Justiça Federal para não cumprir o que determina o STF. De acordo com o prefeito da cidade, Fabiam Thomas (PDT), não é possível que o município cumpra a diferenciação de classe e a prefeitura está disposta, inclusive, a pagar multa caso os instrumentos jurídicos que está movendo para embargar a decisão não surtam efeito.

Foi estipulada uma pena de R$ 500 por dia caso Giruá não estabeleça a possibilidade de pagamento pelo SUS. "Não há como cumprir essa decisão sem descumprir inúmeras outras normas, principalmente a Constituição Federal, porque esta decisão tem um alcance muito maior do que se imagina. Não é simplesmente dar ao cidadão o direito de pagar a diferença e escolher um quarto melhor ou o seu médico. Estamos falando do SUS, que possui duas marcas muito evidentes: uma é a igualdade e outra é a gratuidade. O gestor de saúde hoje não pede o contracheque de ninguém no posto de saúde", protesta o prefeito.

Decisão questionada
No dia 8 de julho, uma comitiva formada por prefeitos e secretários de municípios do Rio Grande do Sul, representantes do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), de associações dos municípios, da procuradoria do estado e deputados realizaram uma audiência com o ministro do STF Carlos Ayres Britto para questionar a decisão. "Na audiência, foi ressaltado pela procuradora do estado do Rio Grande do Sul a diferença entre os primeiros casos que criaram a jurisprudência no tribunal e os casos que estão sendo julgados atualmente. O Supremo está utilizando uma jurisprudência dele mesmo, mas os casos concretos são diferentes. O ministro disse que reconhecia a gravidade da situação e que iria avaliar a questão com cuidado", conta a assessora jurídica do Conasems, Fernanda Terrazas.

Situação diferente
Fernanda explica que as decisões anteriores na qual o Supremo se baseou para julgar a medida em relação ao município de Giruá foram relativas a casos de pessoas que solicitavam acomodações diferenciadas no SUS em decorrência de uma necessidade de saúde. Ela exemplifica com o caso de um paciente com leucemia que, por isso, precisava de um isolamento. Mas numa situação como esta, segundo Fernanda, o SUS já seria obrigado a dar este tratamento diferenciado devido a uma necessidade de saúde. "O que o STF fez foi apenas garantir este direito", afirma.

O Procurador Regional da República da 4ª região (Rio Grande do Sul), Paulo Leivas, diz que neste caso, a jurisprudência – decisão que abre precedentes para que outras situações tenham o mesmo julgamento – é questionável. "Ela se cria exatamente a partir da repetição de fatos: é aplicado o mesmo entendimento judicial em relação aos mesmos fatos. Então, se aquelas decisões foram tomadas para casos distintos, não se pode dizer que há uma jurisprudência do Supremo em relação a esta matéria", diz.

Decisão polêmica
Paulo Leivas considera que, se o STF fizer uma análise melhor do caso, poderá haver uma decisão diferente com relação às outras 11 ações movidas pelo Cremers, já que, na opinião dele, não foram atentados nessa decisão a estrutura e o funcionamento do SUS. "A justiça tem considerado há muitos anos ilegal, inclusive considerando crime, a cobrança de honorários médicos de usuários do SUS", aponta. Paulo informa que foi feito um pedido de vista pelo Ministério Público Federal dos processos em tramitação, o que também pode contribuir para mudar o entendimento sobre o tema.

O procurador questiona também o fato de essa matéria ter sido analisada e a decisão tomada por um único ministro. Para ele, a possibilidade de qualquer pagamento dentro do SUS viola o direito de igualdade previsto na Constituição. "Isso vai permitir que usuários do SUS sejam tratados diferentemente de acordo com sua condição econômica, o que contraria todos princípios constitucionais que regulam o Sistema", destaca.

Poder aquisitivo
O Cremers, entretanto, tem uma leitura diferente da situação. O presidente da entidade, Fernando Mattos, diz, inclusive, que a medida pode ajudar a Constituição a ser cumprida. "Todos nós, ricos ou pobres, temos o direito constitucional individual de utilizar o SUS, mas na maioria das vezes nós estamos aguardando numa fila de espera que demora um, dois, três anos. Neste caso, os pacientes com maior poder aquisitivo poderiam pagar pela diferença de classe, por um quarto em melhores condições que permitisse ficar junto com seus familiares na hora da doença e escolher o seu médico de confiança", argumenta.

Para o Cremers, a decisão ajuda, inclusive, a reduzir as filas do SUS. "Na medida em que um paciente está na fila e consegue sair dela pagando ele mesmo pelo seu direito, ele abre oportunidade para o próximo que, por sua vez, chegará mais rapidamente para receber o atendimento do SUS", defende Fernando. O médico explica que neste caso, o SUS seria desonerado do pagamento do quarto e do médico e arcaria com os gastos de medicamentos e exames que o paciente faria durante a hospitalização.

Fila furada
O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, que também esteve na audiência junto ao STF para questionar a decisão, refuta o argumento de que as filas do SUS diminuirão. "Quem está na fila hoje é quem não tem condição de pagar um plano de saúde e um procedimento privado, e essa pessoa não pagaria de qualquer maneira. Ela permanecerá na fila e agora com um quadro mais grave: esta fila será furada, como se diz popularmente", contesta.

Francisco diz que o Conselho lamenta muito que a ação tenha partido de um órgão de classe que representa profissionais da saúde. Para ele, trata-se de uma tentativa de reserva de mercado para os médicos. "Isso é uma violência com os princípios básicos do SUS. Nós temos um sentimento que eu não sei se é tristeza ou indignação – tudo que nós sempre combatemos para implementar o SUS de repente aparece através de uma proposta que é desconstrutiva, desestruturante, violenta, ilegal, imoral e anti-ética", comenta.

(Publicado originalmente na Revista Poli – saúde,educação e trabalho, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fiocruz)