Sul 21:“Dívida brasileira nunca parou de crescer”, alerta auditora. Palestra Maria Lúcia Fatorelli

“Dívida brasileira nunca parou de crescer”, alerta auditora

Maria Lúcia Fatorelli: ao contrair dívida para pagar juros, Brasil vive uma bola de neve | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Felipe Prestes

O pagamento de dívida pública brasileira alcançou 45% do orçamento da União em 2010 (ou R$ 635 bilhões) e o endividamento só tende a aumentar, por meio de mecanismos ilegais, como a emissão de títulos da dívida para pagar juros. O alerta é da auditora da Receita Federal, Maria Lúcia Fatorelli. “A dívida brasileira nunca parou de crescer. A maior parte deste crescimento vem de pagamento de juros sobre juros. É uma bola de neve”, afirma.

Maria Lúcia esteve em Porto Alegre na última terça-feira (11), para uma palestra no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Em 2010, ela prestou assessoria técnica à CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados, que passou ao largo da grande imprensa nacional.

Uma das responsáveis pelas 900 páginas de análises técnicas da comissão, a auditora aponta que o crescimento da dívida passa por esta emissão de títulos da dívida para pagamento de outras dívidas, considerada ilegal, e também pelo modo como o Banco Central opera o sistema de metas de inflação.

O BC faz um monitoramento permanente da quantidade de reservas dos bancos. Quando detecta que há excesso de moeda, absorve dinheiro das instituições financeiras dando em troca títulos da dívida pública nas chamadas operações de mercado aberto. O resultado, segundo Maria Lúcia Fatorelli, foi o endividamento do Banco Central, de R$ 147 bilhões em 2009 e de R$ 50 bilhões em 2010. Um rombo que acaba sendo pago pelo Tesouro Nacional.

“Nós pagamos este prejuízo. Ou o Tesouro paga, ou emite mais títulos da dívida pública. A Lei de Responsabilidade Fiscal não põe limites para a política monetária”, diz.

Governo deveria controlar entrada de capitais

A auditora afirma que o sistema de metas de inflação brasileiro é responsável por cerca de R$ 500 bilhões de endividamento para o país e que estimula a entrada de “dólares podres” vindos do Exterior. Ela defende que o governo deveria dificultar mais a entrada de capitais. “O correto seria controlar este capital, parar de entrar este dólar podre aqui, mas o governo não faz isto. Deixa o dólar entrar, faz a leitura de que este dólar está provocando excesso de moeda em circulação e, para tirar esta moeda, entrega títulos da dívida”.

Além disto, Maria Lúcia Fatorelli aponta que a inflação brasileira não se deve a excesso de moeda ou de demanda – entendimento equivocado que tem provocado a alta da taxa Selic. Ela diz que a inflação no país passa pela falta de controle sobre preços em áreas vitais como a telefonia, que tem lucros abusivos, cujo valor incide em toda a economia. Defende também que o Brasil não utilize preços internacionais para combustíveis e alimentos.

Auditoria da dívida pública brasileira deveria ter sido feita há duas décadas | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Luta pela realização de auditoria da dívida

Na CPI da Dívida Pública, também saltou aos olhos outras atitudes por parte dos órgãos responsáveis pela política monetária. Foi constatado, por exemplo, que 95% dos “analistas” consultados pelo Comitê de Política Monetária (Copom) para definir a taxa Selic trabalham para o setor financeiro. Apesar das constatações da comissão parlamentar, Maria Lúcia Fatorelli considerou o trabalho insuficiente por vários motivos.

O primeiro deles foi o resultado oficial da CPI, concluída em dezembro do ano passado: um relatório do então deputado (hoje, ministro do Turismo) Pedro Novais (PMDB-MA) que, apoiado pelos pares governistas, reconheceu em parte os problemas, mas não deu nenhum encaminhamento. O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) fez um voto em separado e encaminhou as análises técnicas para o Ministério Público Federal, que formou um grupo de trabalho, com participação de vários procuradores. Eles buscam nas análises provas concretas para constituir uma ação.

Apesar da ação do MPF, Maria Lúcia Fatorelli acredita que é preciso realizar uma auditoria da dívida pública brasileira. Desde 2001, ela coordena o movimento Auditoria Cidadã, que investiga a dívida brasileira e pressiona pela realização de uma auditoria oficial.

Fatorelli explica que a realização desta auditoria é uma previsão da Constituição de 1988. A “constituição cidadã” determinava o prazo de um ano para a realização da auditoria, mas já se vão duas décadas sem ela. A CPI teve número muito insuficiente de técnicos trabalhando e não teve acesso a todos os documentos que requereu. Maria Lúcia acredita que a efetividade de uma auditoria oficial seria muito maior, principalmente pelos encaminhamentos que permitiria.

O exemplo positivo vem do Equador. Fatorelli participou de auditoria oficial da dívida do país sul-americano, que foi concluída em 2008. O trabalho constatou diversas irregularidades no endividamento do país. Com este subsídio, o presidente Rafael Correa propôs aos credores pagar 30% do valor previsto para resgatar todos os títulos. Em torno de 95% dos detentores de títulos da dívida equatoriana aceitaram a proposta, e o país teve uma economia de U$ 7,7 bilhões (valor que representa cerca de 14% do PIB do país em 2008).

Endividamento serve de munição para servidores federais em greve | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Medidas de austeridade

Os esforços por uma auditoria da dívida pública no Brasil têm repercutido na Europa em crise. Em dezembro do ano passado, Maria Lúcia esteve em um evento no Senado da Bélgica. A ideia de auditoria chamou a atenção de militantes de Grécia e da Irlanda, os dois países mais atingidos pela crise econômica na Europa. Em maio deste ano, a auditora da Receita foi convidada a ir à Grécia, onde participou de duas conferências sobre o tema. Na Irlanda, uma comissão foi formada para investigar a dívida do país.

Se hoje países europeus sofrem por não ter como pagar seus débitos, Fatorelli afirma que o Brasil pode ir pelo mesmo caminho. Ela diz que fundos brasileiros geridos pelo governo podem acabar transferindo grande número “papéis podres” para o país. Maria Lúcia se refere aos derivativos, títulos de ações que grandes bancos internacionais “transformam” em dinheiro, negociando-os mesmo sem a certeza de que darão rendimento. Papéis que teriam sido os responsáveis pelo início da crise mundial, nos Estados Unidos. “Já identificamos na Auditoria Cidadã vários mecanismos para transferir estes papéis podres para o Brasil. Um deles está na legislação do pré-sal. Nela está dito que os investimentos do fundo do pré-sal serão aplicados preferencialmente em ativos internacionais. E quais são estes ativos? São estes papéis podres”, diz. Ela afirma ainda que o grande volume de obras justificadas pela realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas no país pode aumentar significativamente o endividamento público.

Mesmo que o Brasil ainda não viva a mesma situação dos europeus, Maria Lúcia Fatorelli já vê o governo tomando medidas de austeridade muito semelhantes com as que vêm sendo realizadas no Velho Continente, caso da privatização dos aeroportos e do corte de R$ 50 bilhões no orçamento de 2011. A auditora cita também projetos que tramitam no Congresso e que podem retirar direitos do funcionalismo público, como o PL 1992, que estabelece um fundo de capitalização para aqueles que ganham acima do teto do regime geral da previdência.

Não à toa, a palestra desta terça (12) foi organizada pela Associação dos Servidores da Ufrgs e da Ufcspa (Assufrgs). Os servidores das universidades federais em todo o país estão em greve, pedindo um piso de três salários mínimos com repercussão no resto da folha. Eles também se manifestam contra a criação do fundo de previdência e contra o PL 549, que estabelece um reajuste fixo para o conjunto da folha do funcionalismo federal para os próximos dez anos.

Berna diz que o conhecimento sobre o endividamento público ajudará – e muito – os servidores em suas reivindicações. “Terá influência enorme, porque o governo diz que tem R$ 19 bilhões para o conjunto do funcionalismo e as nossas demandas teriam custo de R$ 50 bilhões. Este valor, como disse a Maria Lúcia, equivale a apenas 25 dias de pagamento de dívida pública”, disse.