Um raio X da saúde na região e a verdade sobre a EBSERH

Na qualidade de Ex-diretor Administrativo do HUSM (Gestão 2006-2010) e membro do Fórum de Diretores dos Hospitais Universitários Federais do MEC que elaborou toda a base diagnóstica dos problemas dos HUs em 2007 e propuseram o Programa de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais- REHUF venho a público fazer este registro sobre a importância do papel social dos Hospitais Universitários Federais referência 100% SUS, em relação aos demais que possuem outras formas de financiamento e gestão. E alertar que a proposta de adesão do HUSM a EBSERH representa uma ameaça ao ensino, a pesquisa, a extensão e a assistência 100% SUS.

Seguem abaixo as principais considerações, com respeito aos HU’s:
• Participam na formação da quase totalidade dos profissionais de nível superior da área da saúde, seja na graduação, pós-graduação ou residência médica, além de serem responsáveis por grande parte da pesquisa clínica no país;
• Respondem por alto percentual do atendimento de alta complexidade, sendo praticamente o único acesso de que dispõe a população geral a programas de alto nível tecnológico e uso intensivo de especialistas de elevada qualificação – o melhor exemplo são os programas de transplantes;
• Em muitos Estados, especialmente nas capitais, têm um papel essencial nos sistemas de urgência/emergência regionais;
• São indiscutivelmente parte de um patrimônio público de enorme relevância para o bem estar de nossa população, e tanto mais assim tem sido quanto mais se têm integrado ao SUS nos últimos anos;

É nesse circuito que, os hospitais universitários surgem como alicerces para a sustentação do Sistema Único de Saúde. Este fantástico programa, o maior e melhor estruturado programa social entre os países em desenvolvimento. Porque diante de todas essas dificuldades os HU’s, por serem hospitais híbridos – financiados por dois ministérios (MEC e MS), são os únicos que estão conseguindo manter a assistência dentro dos padrões mínimos de qualidade exigidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Não é possível imaginar a funcionalidade desse sistema sem a participação efetiva dos hospitais universitários, que são os grandes centros de desenvolvimento tecnológicos e formadores do conhecimento na área da saúde em nosso país. Por isto, devem estar à frente de todas as discussões e mudanças propostas no SUS em conjunto com todas as entidades representativas da sociedade, denominadas de “CONTROLE SOCIAL”. Os HUs devem atuar como líderes no processo de regionalização e hierarquização da rede de atendimento do SUS e, através dos diversos Conselhos que o representam, devem ser co-responsáveis pelas transformações e melhorias do atendimento da rede pública, gratuita e de qualidade que o povo brasileiro merece.
Os problemas apontados pela atual direção do HUSM não são novos.

Na década de 80, os hospitais universitários passaram por mudanças estruturais. As principais mudanças na estrutura dos HU’s foram:
• A desvinculação à estrutura acadêmica das universidades, com a formação de quadro de pessoal específico para atuar nos hospitais e gestão administrativa independente;
• A inclusão dos HU’s no sistema SUS.
As duas mudanças acima, por elas próprias, não teriam representado prejuízos para os HU’s, entretanto, trouxeram conseqüências desastrosas, pela forma como ocorreram.

A desvinculação à estrutura acadêmica, se por um lado deu autonomia administrativa (importante para a agilização de determinados procedimentos gerenciais, como nas compras de remédios, por exemplo), por outro lado, separou as atividades acadêmicas dos seus principais laboratórios. Ocasionando, com isso o descomprometimento dos departamentos acadêmicos com o funcionamento dos HU’s, tanto na assistência quanto no planejamento das atividades de ensino, pesquisa e extensão.

No âmbito das questões administrativas, o mau exercício da autonomia levou ao surgimento de distorções relativas à probidade de alguns gestores, que assumiram a responsabilidade pelas decisões gerenciais e priorizaram atividades e projetos que não levaram em conta o equilíbrio entre receitas e despesas. Além de celebração de contratos de terceirização sem levar em conta a capacidade de endividamento da unidade hospitalar.
Relativamente à implantação do SUS, o Governo Federal foi pouco a pouco diminuindo o repasse de verbas do MEC, até que, a partir de 1992, suspendeu por completo, como se o único objetivo dos HU’s fosse o assistencial.
Nos anos que antecederam o governo Collor, a necessidade de manter os hospitais em funcionamento obrigou-os a ampliar o número de atendimentos em busca do aumento de produtividade, o que exigia ampliação do quadro de pessoal. Isto ocorreu porque cada vez mais os hospitais passaram a depender das verbas repassadas através do SUS, provenientes dos Estados e Municípios, cujo valor era proporcional ao número de atendimentos ambulatoriais, exames diagnósticos e internações verificadas a cada mês nos HU’s.

Esta situação levou ao predomínio da função assistencial, nos HU’s, com o conseqüente comprometimento das demais funções. Outro fato marcante nos anos 90 foi o descredenciamento do SUS da maioria dos hospitais, não públicos, pela defasagem no valor dos procedimentos da tabela SUS. Ocasionando, o fechamento de leitos hospitalares de baixa e média complexidade. Em decorrência disto, instalou-se nas regiões de abrangência dos HU’s um quadro dramático: a diminuição absoluta da oferta de serviços (diagnóstico, tratamento e de internação hospitalar) nos municípios de pequeno e médio porte, que passaram a referenciar toda esta demanda e os atendimentos das urgências e emergências para os Serviços de Pronto Socorro dos HU’s. Instituindo-se a cultura da “ambulancioterapia” que compromete plenamente a dinâmica de funcionamento dos hospitais de ensino, como por exemplo: a desmarcação de cirurgias eletivas para dar vazão às emergenciais; congestionamento dos procedimentos diagnósticos-cirúrgicos-terapêuticos, com o aumento do tempo de internação e aumento brutal do volume de serviços de média e baixa complexidade, entre outros.

A situação se torna ainda mais complicada com o aumento evidente das exigências legais-burocráticas (gestão), no processo de Contratualização. Que comprometeu as ações assistenciais e de ensino com o aumento da oferta de serviços altamente especializados e de alta complexidade que exigem um quadro de pessoal capacitado e em maior número, tanto para assistência quanto para o ensino.

Como é do conhecimento geral, os HU’s vêm nos últimos anos enfrentando sérios problemas no que diz respeito a não reposição de seu quadro de pessoal. A diminuição da força de trabalho é evidente em decorrência do quadro funcional cada vez mais comprometido com os pedidos de aposentadoria, de exonerações, aumento acentuado de absenteísmo, envelhecimento e falecimento de servidores. Acrescentado a isto está o aumento da complexidade das demandas de atendimento (sofisticação das condutas assistenciais, exigências legais e éticas dos órgãos de vigilância e das Portarias de credenciamento de Alta Complexidade do MS). Em decorrência, disto, fica evidente a sobrecarga de trabalho dos servidores que apresentam um crescente aumento do número de afastamento por atestados médicos por problemas de saúde ocupacionais, reduzindo, em torno 10 % a força de trabalho, ao longo dos últimos anos.

Este cenário de diminuição da força de trabalho, agravado pela diminuição do quadro de pessoal, tem acarretado o fechamento de leitos, subutilização da capacidade instalada das instituições, gerando sérios problemas de ordem social, considerando que os HU’s tornaram-se a última alternativa de atendimento para a população menos favorecida. Esta situação tem levado os HU’s a lançar mão da contratação de pessoal via Fundação de Apoio, através de projetos de ensino, pesquisa e extensão.

É importante dizer que a alternativa de contratação via fundação só é tomada como medida emergencial, pois causa transtornos econômicos quando desvia os escassos recursos de custeio da assistência, financiados pelo MS para pagamento de pessoal.

A dramática situação vivenciada nos HU’s em decorrência da mudança de cenário é agravada pela deficiência de profissionais médicos em diversas áreas especializadas, por exemplo: Intensivistas em Neonatologia, Anestesiologistas, Cirurgiões Pediátricos entre outros.

A situação da força de trabalho na enfermagem também representa um sério problema, pois além de estar sendo reduzida sensivelmente, não houve, nos últimos anos, uma observação aos novos cálculos de dimensionamento de pessoal que mudam radicalmente a proporção de número de profissional por leito. Dito de um modo mais simples, até alguns anos atrás necessitávamos um menor número de profissionais para atender um maior número de leitos. Hoje a relação se inverteu: maior número de profissional para menor número de leitos. Isso se deve ao aumento da complexidade no atendimento. No entanto, essa inversão não ocorreu, a força de trabalho diminuiu e o ciclo da exaustão é cada vez mais acentuado com afastamento definitivo da atividade frente ao paciente por determinação de perícias médicas. Conseqüentemente, torna-se cada vez mais comum os laudos médicos determinando o afastamento do servidor de enfermagem do cuidado direto. A questão é que estes profissionais não são repostos e continuam contando como número no quadro geral. Essa é a diferença, ou seja, além de necessitarmos três vezes mais de pessoas do que antes, pela complexidade do atendimento, temos uma força de trabalho cada vez mais debilitada e diminuída.

Esta mudança de cenário de ensino-assistência-gestão está associada com as necessidades da formação de especialistas, exigindo para tanto, uma complexidade funcional/estrutural dos HU’s totalmente superior a realidade vivida nas décadas passadas.

Estas são algumas das razões que tornam o custo dos HU’s diferentes das demais unidades hospitalares, pois a complexidade das patologias atendidas exige maior tecnologia e insumos de ultima geração para fazer frente a esta demanda.

Mesmo assim, compreendemos esta situação absolutamente paradoxal, pois enquanto gestores questionamos qual o limite da legalidade quando se coloca em risco a vida de pessoas absolutamente sem outras alternativas que não um hospital público? Neste caso, a questão social não se sobrepõe a questão legal que é apresentada pela atual direção do HUSM como sendo uma exigência do Ministério Público? E em relação à formação/qualificação, questionamos existe um limite entre assistência e ensino? Quando começa um e quando termina o outro? Como manter este equilíbrio dentro de uma empresa de direito privado, que para continuar existindo tem que apresentar lucro?

O detalhamento deste documento tem como objetivo principal esclarecer a toda a sociedade da Região Central do nosso Estado sobre a grave situação que os HU’s vêm sofrendo nestes últimos anos, decorrente da visível redução de sua força de trabalho proporcional ao aumento da complexidade das demandas e dos custos dos atendimentos e referência institucional para o SUS.

A Portaria Interministerial Nº. 1006/MEC/MS de 27 de maio de 2004 confere a importância aos hospitais de ensino, como sendo, um local de atenção à saúde de referência para a alta complexidade e de formação e desenvolvimento tecnológico, numa perspectiva de inserção e integração em rede aos serviços de saúde, obedecendo a critérios de necessidade da população. Nestes termos, o hospital de ensino passa a ser o agente responsável pelo desenvolvimento de ações de Educação Permanente para os trabalhadores do hospital de ensino e da Rede Municipal de referência, objetivando, a partir de ações multiprofissionais:
• Diminuir a segmentação do trabalho e implantação do cuidado integral;
• Participar da constituição de equipes de referência matricial para apoiar o trabalho da rede de serviços, de acordo com seu perfil de especialização;
• Apoiar e integrar as iniciativas de desenvolvimento dos profissionais da loco-região na área de urgência e emergência;
• Participar de iniciativas que promovam integração e relações de cooperação técnica entre os diferentes serviços do hospital de ensino e a rede do SUS;
• Contribuir para a formação de profissionais de saúde que contemplem as necessidades do SUS em relação ao atendimento integral, universal e equânime, no âmbito de um sistema regionalizado e hierarquizado de referência e contra-referência, tendo como base o trabalho em equipe multiprofissional e a atenção integral à saúde.

Como podemos verificar a verdadeira formação/ensino não se concretiza dissociada da realidade que a envolve que está no campo da assistência, razão pela qual se faz necessário que as ações de financiamento e manutenção dos HU’s sejam conjuntas pelo MS e pelo MEC, pois os HUs são os legítimos hospitais públicos de ensino 100% SUS, que resistiram até o presente momento ao fascínio do poder econômico, muitas vezes desumano e descabido, em um pais de desigualdades tão agudas. Precisamos que as tecnologias, medicamentos, tratamentos, pesquisa, permaneçam dentro das universidades públicas. Para isto não abrimos mão da academia e principalmente da sua fiscalização ética, que encontramos na Comunidade Universitária e no Programa Nacional de Humanização – Humaniza/SUS.

A Proposta de criação da EBSERH foi uma das exigências apresentadas pelo Banco Mundial para que os recursos necessários para a reestruturação dos HUs fossem financiados por aquela instituição financeira internacional, e foi baseada em modelos utilizados na Europa, principalmente em Portugal, e que não deu certo.

Outra questão fundamental é que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre sempre foi uma empresa pública, possui um financiamento 4 vezes superior ao HUSM, os contratos de trabalho são CLT, os preceptores e chefias recebem polpudas gratificações e sempre enfrentou os mesmos problemas que o HUSM. Pronto Socorro superlotado; falta de funcionários; falta de leitos em UTIs e unidades de internação; suspensão de procedimentos agendados e etc.

Diante de todas estas considerações podemos concluir que a pressa em aprovar a adesão do HUSM a EBSERH, sem um amplo debate com toda a sociedade, com a utilização de argumentos fantasiosos de que como em um passe de mágica todos os problemas “de gestão” desaparecerão, anoitece HUSM e amanhece EBSERH com a mesma equipe diretiva, esconde interesses que não vem ao encontro das verdadeiras necessidade dos usuários do SUS.

Por Carlos Renan do Amaral – Auxiliar de Enfermagem, ex-diretor do Husm

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