As Ciências Sociais e as múltiplas ameaças do neoliberalismo

As Ciências Sociais têm respostas a dar sobre as novas formas de luta popular e social que acontecem na América Latina? Têm acúmulo em sua formulação teórica capaz de reconhecer as maiores ameaças trazidas pelo neoliberalismo à humanidade e os mecanismos de resistência a essas ameaças? Essas instigantes indagações nortearam a mais rica mesa de debates no último dia da IV Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências Sociais, que aconteceu simultaneamente no Hotel Glória e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

As questões foram inicialmente abordadas pelo sociólogo Edgardo Lander, da Universidade Central da Venezuela, que apontou a necessidade de as Ciências Sociais incorporarem de forma rápida e definitiva a dimensão ambiental às suas ferramentas de análise. Segundo Lander, “já não é possível falar de outra coisa”, pois “a destruição das condições que tornam possível a vida” é hoje o grande perigo trazido pelo neoliberalismo ao planeta Terra: “Vivemos uma situação historicamente nova, com enorme impacto da ação humana sobre a natureza e o esgotamento da capacidade de carga do planeta, que é utilizada além de seus limites de reposição desde a década de oitenta”, disse.

Lander citou o aumento da temperatura média nos países nórdicos, a redução drástica da pesca em todo o mundo e a “grande seqüência e intensidade de desastres climáticos” como sinais inequívocos de que o planeta “pode a qualquer momento entrar no estágio em que estejam dadas as condições para mudanças climáticas abruptas”. Apesar desse quadro, o venezuelano não enxerga nos líderes mundiais a vontade política de assumir mudanças globais de atitude frente às ameaças ambientais: “Falar de mudanças climáticas e outras questões ambientais é moda, mesmo nos Estados Unidos. O problema é que, apesar de a maioria dos países hoje em dia ter ministérios ou departamentos de meio ambiente, as políticas públicas continuam obedecendo à outra coisa”, disse.

Essa “outra coisa”, para Lander, é a mercantilização das atividades humanas, que conhece seu ápice nos dias atuais: “A persistência do atual modelo econômico e suas conseqüências ambientais darão as condições de uma extraordinária desigualdade social que será o centro das disputas políticas”, disse, citando como exemplos de uma segregação socioambental que tende a crescer “os avanços na biotecnologia e na nanotecnologia” e a produção de alimentos transgênicos “que transforma o conhecimento dos camponeses em mercadoria”.

A mercantilização do mundo, segundo o sociólogo, encontra na prática da democracia um obstáculo: “Vivemos o ocaso da democracia liberal. Ela teve sua época de ouro após a Segunda Guerra, com a pujança econômica dos Estados Unidos e o estado de bem-estar social na Europa, mas agora já deu o que tinha que dar”, disse. Para Lander, a “guerra permanente” defendida pelo governo de George W. Bush é um processo constitutivo desse sistema que, aos poucos, vai deixando a democracia de lado: “A tal guerra ao terror não tem data e local. Ela é em todo o tempo e em todo o espaço e serve como justificativa permanente para medidas não democráticas”.

Mais humildade

Lander questionou o papel da academia: “A cultura acadêmica vem sendo há anos submetida diretamente à lógica mercantil e está sendo transformada profunda e aceleradamente”. As Ciências Sociais, para ele, “vivem uma crise de conhecimento” frente às ameaças atuais do neoliberalismo: “As Ciências Sociais não podem mais considerar o tempo como um bem infinito. Ou agimos agora ou seremos derrotados para sempre. Se formos derrotados nessa geração e na próxima, no futuro será normal considerarmos, por exemplo, que a água é mesmo uma mercadoria e que aqueles que não têm dinheiro para pagar não têm direito à água”, disse.

Um bom caminho para os sociólogos, segundo Lander, é abrir suas ferramentas de análise aos novos atores sociais: “As principais formas de resistência ao neoliberalismo hoje não obedecem a fórmulas consagradas como a do operário, a do sindicato, etc. São desses novos lugares que vem a maior resistência ao padrão de produção do capitalismo. Hoje, valores como memória e tradição estão incorporados às lutas. Hoje, não há luta de resistência que não seja cultural e coletiva. As Ciências Sociais têm que promover a interação com esses outros conhecimentos e ter a humildade para passar por um processo de reaprendizagem”.

Boaventura e Sader

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos adotou um tom mais ácido para criticar o atual estágio das Ciências Sociais na América Latina e no Caribe. Para ele, existem na região dois grupos de cientistas sociais: “Temos os que defendem as novas formas de luta e os que acham que pouca coisa mudou nesses últimos trinta anos. Estes dois grupos estiveram lado a lado por uma semana aqui nessa conferência, mas eles não se falam”, provocou.

Boaventura afirmou que entre os sociólogos latino-americanos “ainda predomina o pensamento crítico marxista” enquanto surgem na região formas de luta que não obedecem a essa lógica: “É preciso realizar a ecologia dos saberes que obriga o conhecimento científico ao diálogo com outras fontes. A teoria crítica na América Latina segue sendo monocultural e calcada no eurocentrismo, enquanto surgem novas práticas de saberes populares surgidos entre os indígenas, os camponeses, os jovens urbanos, etc. Essas novas articulações muitas vezes trabalham com outras noções de temporalidade, e as Ciências Sociais continuam considerando o tempo como uma coisa linear”.

Eleito novo secretário-executivo do Conselho Latino-Americano e Caribenho de Ciências Sociais (Clacso) para o triênio 2007-2009, o brasileiro Emir Sader defendeu “a articulação das Ciências Sociais como espaço de resistência ao neoliberalismo”. Após criticar Edgardo Lander e afirmar que a exposição feita pelo venezuelano “mais nos esmaga do que nos incentiva”, Sader pediu mais clareza na identificação dos atores envolvidos: “Quem são os sujeitos da destruição ambiental? Por quê as classes dominantes seguem dominantes?”, provocou.

Sader afirmou que a humanidade pode estar perto de viver “um período longo de instabilidade”, pois o neoliberalismo “está podre, mas não apareceram novos modelos de governabilidade”. Para o brasileiro, os cientistas sociais têm que retomar imediatamente os temas da cultura e do trabalho: “O maior perigo hoje não são as armas ou o dinheiro, mas sim o projeto cultural do neoliberalismo, o american way of life. O setor que mais cresce nos dias de hoje é uma espécie de sub-proletariado urbano nas periferias das grandes metrópoles. É uma população excedente, que não é levada em conta pelo sistema. É com ela que as Ciências Sociais precisam atuar”.

Fonte: Maurício Thuswohl/Agência Carta Maior