Crise econômica exige revisão da subserviência promovida pelo PAC, defende professor

Luiz Fernando Novoa Garzon

Em seu lançamento em janeiro de 2007, o PAC foi recebido como uma retomada da intervenção estatal depois de décadas de automutilação de prerrogativas de política econômica. Mas o dito retorno veio disciplinado pé ante pé em trilhas predefinidas pelos setores econômicos "relevantes" no país. Os grupos financeiros à cabeça das fusões e reestruturações ditadas de fora para dentro, as redes de serviços agraciadas com as privatizações, os fornecedores de insumos primários ou semi-elaborados para as cadeias transnacionais ascenderam em escala inversa à da economia nacional. Definido o crescimento que importa, cabe ao governo proporcionar meios de acelerá-lo. No entanto se move?

O Programa de Aceleração do Crescimento expressa o espaço residual a que foi confinado o Estado brasileiro enquanto arena pública. O modelo econômico hegemônico, ou seja, a forma como se ajustam e se combinam as frações dominantes, está cada vez mais fora do âmbito de avaliação, monitoramento e interferência dos eleitores e dos governos por eles constituídos. Em países financeirizados e com função destacada na divisão internacional do trabalho, as eleições pouco interferem na condução dos ministérios da área econômica e especialmente do Banco Central. A saturação desse modelo de liberalização de resultados ficou patente com a quebra da economia argentina e com a multiplicação de vazios de governabilidade em todos os países da periferia, seguidores em graus diversos do mesmo receituário.

A eleição de governos de centro-esquerda e nacionalistas em contextos de impasse político expõe um processo de reacomodação de setores mais amplos, de modo a reciclar os regimes de dominação com a reintrodução de agendas de reconstrução nacional e de maior equalização social e regional. Os países reféns das despesas financeiras são liberados condicionalmente de parte destes encargos a fim de tornar esse desembolso mais consistente e perene ao longo do tempo.

O capital financeiro internacional administrou essa transição, por intermédio de acordos comerciais, programas de liberalização e de assistência técnica firmados bilateralmente com os EUA e UE, ou multilateralmente no âmbito da OMC, BIRD e FMI. A dinamização de economias de escala ampliando os estoques de matérias–primas disponíveis para as transnacionais se torna condição para a continuidade do garroteamento dos orçamentos públicos pelo capital especulativo. A sustentabilidade financeira é uma perspectiva de evasão contínua de capitais com garantia de graus ótimos de evasão futura. Então, crescimento condicionado, subordinado e caudal pode fazer muito bem às bombas de sucção do capital. Títulos do Tesouro escorados em juros máximos e plena liberdade de movimentação dos investimentos, governo sob a (con)fiança de que não haverá "quebra" de contratos. O que pode explicar o júbilo com a obtenção pelo Brasil do grau de investimento (investment grade), um certificado de alto retorno dos investimentos com certeza juramentada pelo país anfitrião?

O controle sobre um território com tamanha abundância e variedade de recursos naturais não é nada desprezível na disputas inter-oligopolistas. Estratégias de deslocalização e de especialização regressiva e progressiva hierarquizam espacialmente os benefícios materiais e imateriais e os instrumentos de comando. Esse controle da periferia não é possível sem parcerias "locais", sem núcleos endógenos que neutralizem movimentos de oposição majoritários, sem a pacificação dos bolsões de miséria com políticas assistenciais eficientes. A gestão de uma economia de enclaves, ou mais precisamente de redes de fornecimento global de produtos com alta escala e baixo valor agregado, exige a recomposição parcial do mercado interno e do setor público.

O que pilota o PAC

O Programa de Aceleração do Crescimento representa uma tentativa de alargamento da brecha criada pelas IFMs para transferir recursos destinados à dívida pública a investimentos em projetos estratégicos de infraestrutura. A lógica do sistema financeiro é aumentar a solvência do país otimizando sua capacidade exportadora e ao mesmo melhorar a "qualidade do gasto público", ou seja, o seu nível de suplementaridade com os requerimentos dos mercados.

Em 2004, o Banco Mundial patrocinou estudos para apresentar programas de flexibilização fiscal a fim de viabilizar programas orientados de crescimento. O Projeto Piloto de Investimentos (PPI) é um produto de encomenda, um programa de oxigenação condicional do que interessa para sua posterior privatização e transnacionalização. Trata-se de autorização de gasto público sem ônus para as metas de ajuste fiscal (superávit primário), desde que os projetos – em PPPs com participação predominante do setor privado – comprovem ser de alto retorno econômico, inclusive fiscal, em benefício da "sustentabilidade da dívida pública". O PAC ergue-se e configura-se no PPI. É sua referência metodológica e sua base normativa, inscrita no último acordo do Brasil com o FMI, mantida depois como política de Estado a partir de 2005, depois de dispensados os serviços externos do Fundo. Consequentemente, expandiu-se o teto do PPI de 0,15% para 0,5% do PIB, por ano.

O PAC foi concebido para otimizar o modelo produtivo rebaixado vigente no país, em coerência com as políticas macroeconômicas restritivas da nossa real capacidade de gerar e distribuir renda. O PAC se legitima, portanto, como indutor, multiplicador e facilitador de investimentos privados em infra-estrutura, ou seja, na melhoria da produtividade dos grandes negócios. "Em vez de risco-Brasil, negócio-Brasil" seria um lema apropriado para o Programa.

Ao observarmos os destinatários últimos dos projetos de expansão das redes de comunicações, de transportes e de energia, caberia falar de indução pública do investimento privado ou de formatação privada e oligopolista dessa mesma indução pública?

Avaliações da correlação de programas públicos de infraestrutura, aplicados nos últimos anos, com o crescimento do PIB em diversos países têm demonstrado que os efeitos de indução/multiplicação dos fatores econômicos no curto/médio prazo (crowding-in) se dão no suporte da oferta e não no suporte da demanda, tal como no padrão keynesiano clássico. A expansão dos gastos se dá de forma comportada, concentrada e monitorada, com foco no aumento da produtividade dos insumos, da escala e da conectividade da logística atrelada aos fluxos exportáveis. A razão de ser do PAC é a redução de custos operacionais para negócios de larga escala, bem como o enquadramento dos riscos regulatórios no setor de infraestrutura. Na prática, significa adotar um espelhismo das necessidades das grandes empresas como necessidades nacionais, com uma franja de beneficiários indiretos como efeito colateral. E para aquilo que seria essencial: tetos limitados e contingenciamentos, ficando o passivo social a cargo de políticas compensatórias focalizadas.

A crise internacional: PAC ou anti-PAC?

Como se sabe, dos R$ 503,9 bilhões previstos para serem investidos até 2010, 58% são para geração e transmissão de energia, 30% para infra-estrutura social e urbana e 12% para logística. Desse total, R$ 67,8 bilhões proviriam do orçamento do governo central e R$ 436,1 bilhões das estatais federais e do setor privado. Todo esse esforço concentrado precisa ser reavaliado em função das conseqüências de se exercer um papel subsidiário de um modelo beneficiário de uma globalização desregrada e assimétrica, agora em crise profunda. Não há porque acelerar em direção ao abismo. A demanda externa por matérias-primas e semi-elaborados decrescerá fortemente por anos seguidos. O crédito internacional encolherá na mesma medida em que aumentarão os requisitos para sua liberação. Os investimentos externos diretos que se mantiverem serão ainda mais incondicionados.

Não há mais justificativa para priorizar política de atração de investimentos, de promover concessões unilaterais e antecipadas para obter e renovar a confiança dos investidores. De que vale oferecer garantia de rentabilidade sem garantia de reciprocidade em termos de difusão tecnológica e de densificação de cadeias produtivas? Querer atrair capitais nessas condições significa disposição de rebaixar direitos sociais, regulamentações e exigências ao nível das perdas de mercado dos setores exportadores. Os porta-vozes das empresas especializadas na degradação de trabalhadores, de cidades e do meio ambiente, depois de promoverem demissões em massa, não hesitam em reivindicar medidas de precarização laboral de emergência, entre outras propostas indecorosas. Medidas públicas de socorro ao setor privado estão sendo implementadas e anunciadas, sem exigência de qualquer contrapartida, por exemplo, algo elementar como exigência de manutenção dos empregos.

Os recursos públicos, as estatais e o BNDES não podem continuar a ser instrumentalizados por uma massa privada falida, por um ralo sem fundo. O dinamismo econômico possível passa por uma reversão do modelo econômico vigente, exógeno e segregador. Dar centralidade ao mercado interno através de políticas de fomento à substituição de importações e ao desenvolvimento tecnológico, de priorização das pequenas e médias empresas e da agricultura familiar. O retorno econômico dos projetos precisa ser antes retorno duradouro e para todos. Os critérios de financiamento público – cobiçadíssimo em tempos de vacas magras – precisam incorporar componentes sociais, ambientais e territoriais que sejam inerentes a um novo tipo de cálculo econômico. Justamente o que não precisamos é de mais PAC , um "PAC plus", a mão visível adestrada pela invisível, a cartorialização das economias de enclave.

Precisamos de um anti-PAC, em que o setor público passe a ser condutor, na exata medida do poder de conduzir que dispõe, nas condições colocadas e em potência. Definidas as características basilares do PAC – de suplementaridade dos setores econômicos antes competitivos, de passividade frente ao modelo e de atividade consentida apenas para sua otimização -, a antítese do PAC seria um programa de desenvolvimento nacional e regional definido a partir das necessidades, direitos e urgências do conjunto da população brasileira. A premissa óbvia é o desembaraço da camisa de força macroeconômica, é romper com o cativeiro rentista gerido por um Banco Central manietado por conglomerados financeiros causadores e alimentadores da presente crise.

Que em 2009 a reavaliação da política econômica, do papel das estatais, do BNDES e do Banco Central possa ser o ponto focal de nossos debates, reflexões e mobilizações. Diante da crise, ou capitulamos frente aos seus corretivos, submetendo-nos a mais barbárie institucionalizada amanhã, ou reunimos capacidade de talhar uma alternativa de poder de forma consequente nas fissuras sistêmicas que se apresentam.

(1) Domingues, Edson Paulo. Impacto dos Investimentos do PAC em Minas Gerais, Texto de Discussão n° 339, CEDEPLAR-UFMG, outubro de 2008.

Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de Rondônia e membro da ATTAC, da Rede Brasil sobre IFMS e da REBRIP.