A cultura da barganha, reportagem do jornal Zero Hora sobre os CCs

LEANDRO FONTOURA

Apesar de todas as contra-indicações, há uma prática que não esmorece no setor público brasileiro: o emprego livre e extensivo no serviço público de acordo com critérios políticos. O governo federal tem duas vezes mais cargos em comissão (CCs) que o dos Estados Unidos, e o número não pára de crescer.

As duas principais organizações não-governamentais de combate à corrupção no país – Transparência Brasil e Contas Abertas – apontam as funções de livre preenchimento como portas abertas para a corrupção no setor público. O envolvimento de CCs nos mais recentes escândalos que abalaram o país comprovaria essa tese. Somente no governo Luiz Inácio Lula da Silva, há um rol de denúncias que começa nos Correios, em 2005, e se estende à Infraero, em 2007.

– Esses casos são provocados por pessoas estranhas ao quadro. São pessoas que descem de pára-quedas e não têm compromisso com o serviço público. Estão ali passando uma temporada – diz o economista Gil Castello Branco, consultor do Contas Abertas.

Criados durante a ditadura militar, os cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) – nome oficial para cargos em comissão – tinham como meta tornar a administração pública mais eficiente e desburocratizada. Na opinião de Castello Branco, a experiência tem mostrado uma outra realidade: a redução da qualidade do serviço prestado. Como o critério de preenchimento das vagas é a confiança e não o concurso público, a competência é relegada a segundo plano.

Desde 2003, número de CCs cresceu 17,4%

– Nos países mais desenvolvidos, a regra é ter uma burocracia estável, treinada e comprometida com os interesses públicos. É justamente o que não temos aqui – diz o economista.

O cientista político Daniel de Mendonça, por outro lado, ressalta que os CCs têm uma função fundamental, a de dar a cara política do grupo que está no poder à máquina pública. Ele condena, no entanto, o aumento descontrolado das vagas. Os alertas têm pouco efeito no mundo político.

Desde o início do governo Lula, em 2003, o número de comissionados no Executivo aumentou 17,4%, chegando a 21.563 vagas. No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), o crescimento havia sido de 12,6%. A cultura dos CCs não é combatida pelos governos porque é parte do sistema político.

Como o partido do presidente não consegue eleger maioria no Congresso, é a partilha de cargos que dá forma à base de apoio e garante a governabilidade. Para fazer andar a prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), por exemplo, Lula aceitou nomear o ex-prefeito do Rio Luiz Paulo Conde, indicado pelo PMDB, para a presidência de Furnas.

– Como o presidente não tem maioria, é preciso fazer um governo de coalizão que, muitas vezes, contraria a vontade do próprio governante – diz Mendonça.

A solução para reduzir a barganha, acredita o cientista político, estaria na reforma política. Em eterna discussão no Congresso, a reforma está justamente nas mãos de quem se beneficia com a situação atual.
( leandro.fontoura@zerohora.com.br )

O que é cargo em comissão
É a vaga no serviço público ocupada por pessoas convidadas por autoridades dos três poderes para funções de direção ou assessoramento sem que para isso precisem prestar concurso público ou mostrar preparo técnico.
Indicações caras
– Para obter apoio do PMDB à prorrogação da CPMF, o governo aceitou a indicação do ex-prefeito do Rio Luiz Paulo Conde para comandar Furnas.
– Levado para a Casa Civil como subchefe de Assuntos Parlamentares pelo ex-ministro José Dirceu, Waldomiro Diniz provocou o primeiro grande escândalo do governo Lula depois da comprovação de que cobrava propina.
– Indicado pelo PTB para ocupar cargo de chefia nos Correios, Maurício Marinho comandava o Departamento de Contratação e Administração de Material da estatal até ser denunciado por cobrar propina de empresas.

Lula muda perfil de cargos

Uma medida anunciada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva mudou o perfil dos ocupantes de cargos em comissão (CCs). Um decreto determinou que a maior parte das vagas seja destinada a funcionários públicos de carreira.

Até julho de 2005, o governo federal tinha direito de nomear quem desejasse para as funções comissionadas, independentemente de comprovação de competência. Naquele ano, o número de CCs disponíveis era de 19.925. Em decreto, Lula exigiu que 75% dos CCs de áreas técnicas e com salários mais baixos (hoje entre R$ 1.977 e R$ 3.777) fossem ocupados por funcionários concursados.

No caso dos cargos intermediários, cujo vencimento é de R$ 6.396, a metade precisa ficar com servidores do quadro. Já entre os CCs de alto escalão, o preenchimento continua obedecendo ao critério da confiança. Na época, a Casa Civil justificou as mudanças como forma de profissionalizar o setor público, levando o funcionalismo federal a ocupar cargos de chefia ou assessoria. A medida, porém, foi tomada num contexto adverso: Lula e o PT viviam o auge do escândalo do mensalão, quando dirigentes do partido e integrantes do governo foram acusados de armar um esquema de corrupção para comprar votos da base aliada no Congresso.

Hoje, dos 21.563 cargos comissionados existentes no Executivo, apenas 4.682 estão nas mãos de pessoas que não passaram por nenhum tipo de seleção pública, segundo o Ministério do Planejamento. A mudança não torna as vagas imunes à indicação política, uma vez que o decreto define como servidor de carreira qualquer funcionário da estrutura pública brasileira, incluindo as administrações estaduais e municipais. Essa brecha permite o atendimento de interesses políticos regionais.

– A sociedade civil organizada tem de cobrar mais – diz o economista Gil Castello Branco, consultor da ONG Contas Abertas.

"É o principal motor da corrupção no Brasil"

Entrevista: Claudio Weber Abramo, Diretor Executivo da ONG Transparência Brasil

À frente de uma organização não-governamental dedicada ao combate à corrupção, Claudio Weber Abramo aponta os cargos comissionados como principal brecha para a corrupção do serviço público brasileiro. O diretor executivo da ONG Transparência Brasil, porém, não enxerga solução a curto prazo. Para ele, todas as legendas têm interesse em manter as indicações políticas.

A seguir, trechos da entrevista concedida por Abramo por telefone a Zero Hora.

Zero Hora – Como o senhor avalia o número de cargos em comissão no governo federal?

Claudio Weber Abramo – Esse talvez seja o principal motor da corrupção no Brasil. É um problema que afeta as administrações federal, estaduais e municipais. E é autorizado pela Constituição.

ZH – Qual é a principal função dos CCs para o governo?

Abramo – Notoriamente, o Executivo, para ter menos chateações com o Legislativo, precisa assegurar seu apoio. Então, o Executivo faz uma barganha. Quem vota com o governo fica com determinados cargos. É assim em todo início de governo. Estamos em agosto, e a base aliada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda está se digladiando por espaços. Temos é de perguntar por que os partidos querem esses cargos.

ZH – Por quê?

Abramo – Será que estão altamente preocupados com a eficiência da gestão do Estado? Será que a legenda que deseja o Dnit (Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes) tem no seu programa a modernização do transporte como meta partidária? É evidente que querem outra coisa. O malefício que isso traz é flagrante. Em qualquer cartilha de combate à corrupção de instituições públicas internacionais, como o Banco Mundial, consta entre as primeiras recomendações a drástica redução das nomeações políticas.

ZH – Como o senhor analisa os CCs de chefia reservados a servidores do quadro?

Abramo – O problema é dever a nomeação a uma negociação política. Aí tanto faz a pessoa ser servidor de carreira ou não. Ela deve sua posição a ser fiel a um determinado interesse. A competência nem entra em consideração.

ZH – Qual é a solução?

Abramo – Temos de mexer na Constituição e reduzir a possibilidade de nomeação de CCs. Nos Estados Unidos, que tem um sistema presidencialista de governo semelhante ao do Brasil, o número de pessoas nomeadas pelo presidente da República chega a 9.051 e, na maioria dos casos, é necessário ter aprovação do Senado ou da Câmara. Seria ideal se houvesse maior visibilidade e transparência. Mas não vejo mudanças a curto prazo. Ninguém está interessado em resolver isso.

Fonte: Zero Hora – Domingo, dia 12/8/07