A polícia como um caso de polícia, artigo do jornalista Ayrton Centeno

Benvindos de volta ao mundo das cavernas. A não ser durante a ditadura militar, eu nunca havia visto a Brigada Militar, sem qualquer provocação, atacar pessoas que estavam reunidas em assembléia, discutindo o que fazer diante da proibição – injusta, ilegal e inconstitucional – de exercerem o seu direito inquestionável de irem até as portas do Palácio Piratini e dizerem que não gostam da sua atual inquilina, nem das suas políticas, nem do modo que, segundo seu ex-chefe da Casa Civil, seu governo trata o dinheiro público. Simples, legal e legítimo.

Meninos eu vi! Posso dizer, à la Joel Silveira, porque ainda tenho a memória da obstrução da garganta e da cegueira momentânea que o gás provoca. Apoiada por helicópteros, viaturas e camburões, a tropa de choque do valente coronel Mendes marchou, ombro a ombro, de dois lados, para cima dos manifestantes na frente do parque da Harmonia. Nem as mãos estendidas e os pedidos de calma das lideranças e dos deputados Dionilso Marcon e Raul Carrion contiveram a arremetida. A decisão já fôra tomada. Minutos antes, Mendes, o Bravo, dera uma entrevista no palco dos acontecimentos ao Polícia em Ação, onde descrevera ao repórter Paulão sua visão dos movimentos sociais como “formação de quadrilha” e “baderna”. Terminou a fala anunciando que iria liberar a área imediatamente.

E assim foi feito. À força de cassetetes, bombas de gás e disparos de balas de borracha, os manifestantes recuaram aos trambolhões, enquanto muitas mães arrastavam suas crianças pequenas pelos braços correndo em desespero em busca de abrigo pelo mesmo parque que a cidade – desrespeitando a denominação oficial e postiça que louva o chefe do clã do monopólio da comunicação – chama afetivamente de Harmonia, uma designação sarcástica neste 11 de junho. No céu, dois helicópteros moviam-se em círculos sobre as árvores, compondo a produção modesta porém esforçada desse Apocalipse Now guasca.

Leonildo Zang, 54 anos, 25 de militância, uma placa de sangue coagulado na testa, foi um dos que correu. “Não entendo isso. A gente estava tranqüilo, não fizemos nada, não ocupamos nada e a polícia veio reprimir. Nunca vi nada dessa natureza. Parece coisa de Hitler!”, pasmou-se.

Zang falava no ambiente ainda empestado pela fumaça e o gás. Cheiro que ele e os demais não apreciaram nem um pouco. Aliás, por falar em cheiro e em Apocalipse Now, no filme de Francis Ford Coppola, uma figura impactante, o tenente-coronel da aeronáutica, Bill Kilgore, joga seus helicópteros num ráide sobre uma vila miserável de pescadores vietnamitas. É uma cena esplêndida que todo mundo lembra: ao som da Cavalgada das Valquírias, esmigalha até o ultimo resquício de resistência e arremata a obra com um bombardeio de napalm na selva contígua. E explica: “Eu adoro o cheiro de napalm pela manhã”. Cheiros são assim, escolhas de intensa subjetividade. Não se sabe qual o cheiro que o coronel Mendes prefere, mas, depois de hoje, pode-se presumir que talvez seja o forte odor que emana do governo a que serve.

Fonte: Ayrton Centeno/Blog RS Urgente (11/6/08)