A desumanidade do Teletrabalho, por Rui Muniz

Por Rui Muniz*

A falta de debates sobre a nossa humanidade é algo que assusta, porque em primeiro lugar a vida, as condições que ela acontece e as relações que temos entre nós e com o meio ambiente que nos acolhe e proporciona a permanência da existência humana.

Nossas pautas se tornaram reflexos de um modelo de vida que se ocupa por garantir exclusões e diferenças, que admite a existência como algo divino, em boa parte, mas que justifica em nome da vida atrocidades como guerras por territórios e dinheiro, matanças pelas diferenças, desmatamento e extermínio da natureza, tudo em nome de um suposto desenvolvimento, da super exploração de uns sobre outros, que resultam em desemprego, miséria, fome e adoecimentos em massa, justificados e aceitos por uma justiça que opera para poucos.

Essa realidade joga boa parte do povo à desesperança, porque não se sentem capazes de mudar esse mundo de mentiras humanas, de inverdades impostas, controladas e aceitas de forma mórbida, fazendo com que visões políticas cheguem a adotar teses de inexorabilidade dessa realidade, contrariando completamente valores de vida e do que construímos de identidade enquanto organização humana e social igualitária, de vida plena.

E vivemos em meio a deuses e axiomas criados em nome de poderes, dogmas contrários às possibilidades humanas de paz e natureza, reduzindo essa humanidade a conquistas e dominações, para uns, e escravidão e miséria, para muitos. Esse sistema de relações, na contemporaneidade se sustenta em paradoxos de riqueza e pobreza, expressa intencionalmente por diferentes denominações técnicas, instalando na sociedade modos e meios de produção e sobrevivência desumanos, que aprofundam a exploração pelo trabalho. Mais que isso, Estado e governos admitem romper com a justificativa de sua própria existência e legitimam essa lógica segregadora, afirmando que as relações existentes no mundo do trabalho não necessitam regramentos humanos; chegamos a um momento de tamanha involução onde dois terços das mulheres e homens em atividades não têm relação de trabalho formalizada, estão desabrigados por qualquer regularidade e conformidade de condições, desprotegidos pelo Estado em controle, assistência e seguridade, levando à barbárie da pobreza e da miséria.

“Vivemos um tempo de mudanças transformadoras no mundo do trabalho, impulsionado por inovações tecnológicas, mudanças demográficas, mudanças ambientais e climáticas e globalização, bem como em um tempo de desigualdades persistentes, que têm impactos profundos na natureza e futuro do trabalho e no lugar e dignidade das pessoas”. A denúncia consta da carta dos trabalhadores aprovada no VIII Fórum Brics Sindical, encontro de lideranças sindicais dos cinco países que compõem o Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, em 2019. Esse é o cenário do mundo do trabalho, onde estratagemas de cobrança e pressão sobre as trabalhadoras e trabalhadores se dão com o “permissionismo” das leis trabalhistas, que desregulamentam conquistas e ampliam o poder de expropriação das empresas e instituições. São estruturas em busca da extração máxima de trabalho nas piores condições possíveis, garantindo baixos custos para essas organizações.

A Declaração do Centenário da OIT sobre o Futuro do Trabalho aponta que é necessário aproveitar todo o potencial do progresso tecnológico e da produtividade com diálogo social para alcançarmos trabalho digno e desenvolvimento para todos e todas. Importante ressaltar que são os Estados que terão que fazer as adequações necessárias aos sistemas regulatórios, fiscais, educacionais e de proteção social para incluir os excluídos e gerar políticas de emprego que visem geração e promoção de trabalho decente. Mas o que ocorre em países do BRICS são reformas perversas que atacam direitos e o trabalho decente, fortalecendo cada vez mais modalidades de trabalho precário.

Esse mundo do trabalho se impõe em uma substituição tecnológica que ao invés de promover a inclusão social, provoca a exclusão de trabalhadoras e trabalhadores; quanto aos modos e meios de produção, as mudanças não se propõem a reduzir riscos ou melhorar as condições e ambientes de trabalho, mas conduzem a uma grosseria despreocupação com condicionantes científicos e técnicos garantidores de qualidade de vida social, individual e coletiva; com relação à organização e gestão do trabalho, a humanização e coletivização enriquecedora do saber e fazer são transformados em hierarquia e submissão autoritária por controles individuais de desempenho vinculados à tão somente produtividade.

As mudanças das regras que vivemos visam a resultados não humanos, de expropriação cada vez em escala maior. São construções que têm por referência a maior exploração, a desumanização do trabalho, onde teletrabalho – IN65 é mais um instrumento dessa lógica de metas, rigidez autoritária de estruturas e produtividades, inadmissíveis em qualquer ambiente organizacional e, particularmente, impróprio e inaceitável nos processos de Ensino, Pesquisa e Extensão, que têm por essência a liberdade do fazer, a autonomia para construir e a democracia do pensar, elementos de fundamento para seus desenvolvimentos.

Como resultado, essas novas imposições desumanas, além de retirar do Estado funções estratégicas, estão consolidando um cenário de adoecimentos manifestos em transtornos e comportamentos, mudanças destrutivas pela pobreza moral e escravagista do trabalho individual, levando grande parte do povo à miséria e ao desemprego, que no Brasil atinge números estratosféricos de dezenas de milhares. Soma-se a esse cenário a transferência de responsabilidades e, por fim, à intenção de transformar direitos em mercadorias: se quiser saúde, faça um plano privado; se quiser educação, faça um financiamento; se quiser assistência e aposentadoria, faça um plano privado; se quiser viajar, pague um pedágio… se quiser comer, junte comida nas ruas.

Essa realidade não está dada, a IN 65 não está dada, ela não é um axioma ou dogma a ser legitimado e seguido. Há funções importantes a serem desenvolvidas na base dos TAES na ASSUFRGS Sindicato e por nossos Sindicatos nacionalmente, a partir da FASUBRA:

  • Dizer não à IN 65; qualquer debate sobre relação de trabalho só após à pandemia, com o retorno à normalidade funcional das IFES, e alinhado à garantia das funções de Ensino, Pesquisa e Extensão públicas;
  • Articular e apontar debate democrático para a nossa base dos TAES com relação ao teletrabalho, propondo a coletivização da pauta e da definição de estratégia;
  • Precisamos denunciar, enfrentar, construir alternativas coletivas, humanizantes e inclusivas;
  • Construir ações, a partir de organizações democráticas, que conscientizem, que provoquem e promovam projetos alternativos, coletivos, com alternativas reais à humanidade de cada local, articuladas com as funções públicas das nossas IFES;

O debate, de fundo, sobre humanidade, certamente passa por concepção de Estado e construção de um projeto humano e ecológico para a sociedade, que começa em nossas Instituições Federais de Ensino Superior e passa por todas as organizações e ambientes da sociedade; precisamos afirmar que a humanidade é maior que a exploração, o autoritarismo, as legislações e a burocratização da vida e das organizações.

*Rui P. D. Muniz. Servidor da UFRGS, Engenheiro, Especialista em Gestão e Mestre em Ergonomia, Militante Sindical e Ecossocialista